ALINHAVAR PALAVRAS

A banalidade do mal

            Certa vez um amigo ao escrever um desabafo diante das já comuns situações de injustiça: “A dor da gente não sai no jornal.” Suas palavras, como seus gestos de profunda crença na capacidade humana de reinventar-se, ainda hoje soam em mim. Os jornais diários sangram com as mais terríveis notícias de assassinatos, apologias à violência; notícias de impunidade, da fome que volta assolar o país,da retirada de direitos, acrescido pela banalização dos fatos por governantes eleitos. Diante das distopias seguimos alguns anestesiados, indiferentes, outros desesperançados e há ainda os que seguem de acordo com a ordem das coisas.

Difícil compreender como no “jogo democrático”, desde processos eleitorais como da chamada liberdade de expressão, temos reafirmado a tradição autoritária e certo encantamento por figuras populistas, líderes “salvadores da pátria”, “mitos” que marcam nossa história. Parecemos distraídos com nosso passado e iludidos com um futuro que obviamente será assombroso, basta observarmos atentamente o presente.

Talvez se fossemos mais atentos a arte faríamos política de outro jeito. Com alguma pitadinha de justiça social! Relendo “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus, diário escrito na década de cinquenta do século XX, por esta mulher negra, favelada e sábia temos:

Mas eu já observei os nossos políticos. Para observá-los fui na Assembleia. A sucursal do Purgatório, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no palácio do Governo. Foi lá que eu vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as tragédias que os políticos representam em relação ao povo.”[1]

Carolina é um convite a pensar sobre o aprendizado do pensar não deixando-se apenas levar pelos fatos e circunstâncias. Nos indaga acerca da justa indignação diante do estado de coisas que há num mundo adoecido. Somo a esta reflexão outra mulher. A filósofa alemã, de origem judaica, Hannah Arendt que trabalhando como correspondente pela revista The New Yorker cobriu as sessões do julgamento do oficial Adolf  Eichmann, tornadas públicas pelo governo israelense em 1963. Eichmann foi um carrasco, trabalhou como oficial da Gestapo nazista e foi responsabilizado pela logística de extermínio de milhões de pessoas. Foi capturado na Argentina, julgado e condenado a morte em Jerusalém no ano de 1961.

Ao analisar o comportamento do acusado, que também teve a oportunidade de entrevistar, Arendt o identificou como um burocrata, um sujeito medíocre, que sem pensar nas consequências de seus atos agia segundo o que acreditava ser seu dever, sem questionamentos para o bem ou para o mal, pois seu foco era sua carreira profissional e, enquanto oficial, era um funcionário zeloso, cumpridor de ordens. Diante dos horrores do totalitarismo que atingiu o século XX a filósofa mergulhou numa vasta produção teórica. Em suas reflexões questiona se o hábito de analisar qualquer acontecimento, ponderar, poderia evitar o mal. Será que um dos atributos da banalização do mal, da naturalização de toda forma de mal, estaria no não exercício de pensar?

Uma das facetas do não pensar está na massificação com diferentes estratégias, como os meios de comunicação e a proliferação de informações nem sempre verdadeiras, tais como Fake News nos tempos atuais; a alienação religiosa que promove intolerância e desinformação; a negação de dissensos, da diferença e do diálogo. Até que ponto estamos sustentando comportamentos deploráveis simplesmente porque não pensamos nas consequências? Arendt demonstrou como pessoas que se consideram de bem, em conjunturas históricas adversas são levados a apoiarem ideias equivocadas e desumanas. O mal ao tornar-se corriqueiro acaba por ser incorporado como trivial. A história ensina que discursos de ódio sempre antecedem ações de ódio. As palavras ditas tem consequências.

A banalização do mal à brasileira é tão cotidiano que se reproduziu como praga. Um país inaugurado do estupro das índias e que segue negando o direitos dos povos indígenas existirem; com mais de cinco de séculos de exploração e destruição dos recursos naturais; que escravizou, matou e gestou formas singulares de racismo; país em que mulheres negras escravizadas foram sistematicamente estupradas e segue naturalizando a cultura do estupro; onde torturadores nunca foram punidos por seus crimes contra humanidade; país do genocídio da juventude negra; país que mata mulheres por serem mulheres; país que sistematicamente nega o direito à educação pública, assim como outros direitos fundamentais. Sim! Somos a encarnação da banalização do mal, ainda que não somente isso. Precisamos encarar os fatos, como na música de Milton Nascimento, Notícias do meu Brasil: “Ficar de frente para o mar e de costas pro Brasil não vai fazer deste lugar um bom país.”

O Brasil assombra! O Brasil somos nós! A caixa de pandora com todos os males foi aberta. Que a esperança não tenha escapado…

Paulo Freire, mundialmente reconhecido como um dos maiores educadores do século XX e demonizado por defensores da banalização do mal, dizia que não vivemos enclausurados numa dada condição existencial, não somos determinados a aceitar o que está dado como imutável e a esperança é uma necessidade ontológica, algo que nos coloca em movimento. Esperança que nos desafia ao exercício de desvelar as razões das injustiças, desvelar as mentiras e toda forma de opressão, pois “[…] a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo onde não é possível juntar forças indispensáveis ao embate recriador do mundo[2]”.Que não percamos o endereço da esperança e que pensemos sobre nossos hábitos de banalizar o mal!

[1]JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10ª ed. São Paulo:  Ática, 2014, p. 53.

[2] Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido, 1999, p. 10.

2 de agosto de 2019 – Gisele Moura Schnorr

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