ALINHAVAR PALAVRAS

DEIXAR-SE TOCAR PELA FILOSOFIA

Deixar-se tocar pela filosofia é um caminho sem volta. Companheira de vida, de viagens e de vertigens, senhora experiente flerta com a verdade e tem na dúvida seu maior encantamento. Pensa o finito e o infinito. A vida e a morte. Questiona o tempo e o inventa. Dança com o mistério e morre nas certezas. Como sábia anciã por vezes parece caduca e por vezes tem poder de vidência, anunciando o que nem todos querem ouvir, pois seu chamado é para reparar, rever, desobedecer e reaprender a viver. Sim! É da vida que se ocupa a filosofia! Alerta sobre a efemeridade do humano diante do mistério do mundo.

E, como num jogo de contrários, há momentos que se apresenta como uma criança embebida na sede da curiosidade, no espanto e na esperança diante do humano. Na ambiguidade entre a anciã e a criança, entre maturidade e incertezas, tradição e novidade, nos inebriamos com seus dizeres e fazeres que esvaziam-se de sentidos de tempos em tempos, nos abandonando a própria sorte, deixando-nos à deriva.

Com esta companheira, a filosofia, é possível visitar o mais íntimo de nós e nos lançarmos ao outro em seu mistério. Filosofar, como viajar, educa os sentidos. Se ver é permeado por certa passividade, ato involuntário, um deslizamento desatento sobre as coisas e o mundo, filosofar nos convida ao olhar ativo, que indaga, investiga e se comove. Como em um caleidoscópio que a cada ação das mãos a girar faz o inédito surgir: filosofar é criar!

Estar em companhia sábia, hora da anciã ora da criança, sem os cenários das viagens, seria a clausura em-si-mesmo. Filosofar é um estar no mundo, senti-lo, pensá-lo e em tempos de estiagem arar a terra em ato de preparo e cultivo ao que poderá surgir.

Quem tem em sua companhia a filosofia tem os pés na lama do território que assombra. E neste sentido lembramos dos viajantes do “velho mundo” que aos chegarem por estas terras “tupiniquins” em 1500 se assombraram e trouxeram consigo, também, filosofias. Desde então nos parece ambígua a relação da cultura brasileira com o filosofar. Talvez isso se deva ao que, em 1925, bem sintetizou, o modernista Oswald de Andrade, no poema “Erro de Português”:

Quando o português chegou

Debaixo duma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português

Vestiu literalmente, incidindo, quase sempre com violência, sobre corpos e culturas, vestindo suas visões de mundo, portanto, suas filosofias. Entre estas, sem dúvida a filosofia aristotélica-tomista da Companhia de Jesus teve forte impacto. Depois na república de marechais inauguramos uma tradição antipovo marcada pelo positivismo alienante e autoritário que talvez explique em certa medida porque a filosofia de Paulo Freire segue exilada e sob ataques. Por estas terras mesmo ideais iluministas e suas máximas liberais de igualdade, liberdade e fraternidade foram reprimidos em conjurações, revoltas e manifestações ao longo dos séculos. Questões que ajudam a compreender uma cultura onde direitos são confundidos com privilégios e onde o público é sequestrado a serviço de interesses privados.

O encontro de culturas produziu marcas tanto nos europeus como entre os povos originários. Povos que seguem resistindo e nós seguimos pouco aprendendo com eles. O que ocorreu diante do encontro com o diferente foi assombro! Se o espanto, o assombro, é terreno fértil ao filosofar a resposta do colonizador não foi despir-se de suas crenças (doxas). O que fazem é lançar uma terrível sentença: “imita-me ou devoro-te!”  Muitos foram devorados, outros tantos tornam-se cópias de uma identidade em crise e outros devoram e recriam algo novo num gesto antropofágico, como desejou Oswald.

Na roda viva o humano segue assombrando e diante do chamado à intolerância, à violência, à irracionalidade e ao fanatismo a filosofia resiste pois filosofia está para a democracia. Tema destacado na “Declaração de Paris para a Filosofia”, das jornadas internacionais “Filosofia e Democracia no Mundo” (1995), eis um trecho:

“Constatamos que os problemas de que trata a filosofia são os da vida e da existência dos homens considerados universalmente. […] Reafirmamos que a educação filosófica, formando espíritos livres e reflexivos – capazes de resistir às diversas formas de propaganda, de fanatismo, de exclusão e de intolerância – contribui para a paz e prepara cada um a assumir suas responsabilidades face às grandes interrogações contemporâneas, notadamente no domínio da ética. Julgamos que o desenvolvimento da reflexão filosófica, no ensino e na vida cultural, contribui de maneira importante para a formação de cidadãos, no exercício de sua capacidade de julgamento, elemento fundamental de toda democracia. […] A atividade filosófica, como prática livre da reflexão, não pode considerar alguma verdade como definitivamente alcançada, e incita a respeitar as convicções de cada um; mas ela não deve, em nenhum caso, sob pena de negar-se a si mesma, aceitar doutrinas que neguem a liberdade de outrem, injuriando a dignidade humana e engendrando a barbárie.”

17 de maio de 2019 – Gisele Moura Schnorr

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