ALINHAVAR PALAVRAS

Filosofia indígena. Sim, temos!

Na coluna anterior escrevemos algumas linhas sobre “Deixar-se tocar pela Filosofia”. Como país colonizado, com forte reprodução de estrangeirismos de todo tipo, seguimos devotos do pensar com cabresto, voltado para modelos externos sejam europeus ou norte-americanos e de acréscimo uma tradição antidemocrática. Do ponto de vista da filosofia, que serve como reflexão para outras áreas de conhecimento, é ilustrativo que filosofamos ignorando nossa diversidade cultural e nossos problemas concretos. O Brasil é um território fértil para o filosofar e nosso filosofar precisa ser tocado por nossas gentes, nossas vidas, nossas dores. Filosofar é pensar o pensado de modo situado, desde nosso contexto, pensar questões humanas como o sentido da vida, questões éticas, estéticas, políticas, epistêmicas, etc.

Há muitas vozes ausentes em nosso modo de pensar e o Brasil perde com isso. Pensar se faz com o outro, como o diferente e nas diferenças. Pensar com é práxis de colaboração e reciprocidade que antropofagicamente nos tece outros, em outros modos de ser e estar no mundo. Quiçá melhores!

Nosso território é marcado por povos que a mais de 500 anos resistem ao extermínio, a destruição de suas casas: a natureza, a terra e são guardiões da biodiversidade[1]. Me refiro aos que erroneamente chamamos de índios. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, a população indígena gira em torno de 896,9 mil pessoas divididas em 305 etnias e falantes de 274 línguas. Cada etnia um povo, com especificidades e linguagens que expressam concepções de mundo.  A diversidade cultural brasileira representa múltiplas maneiras de comunicar-se, de nutrir-se, de fazer educação, de produzir, de se organizar social e comunitariamente, de produzir conhecimentos, de diferentes formas de dançar, de cantar, celebrar, de construir moradias, de curar enfermidades, de produzir alimentos, de filosofar e de reaprender a pensar e a ser.

A presença indígena na formação da sociedade brasileira é marcante e ainda hoje é comum nossas escolas, assim como em outros espaços, retratarem os povos indígenas de forma folclórica, com estereótipos e preconceitos. Conhecermos a nós mesmos passa pelo reconhecimento de que não há Brasil sem indígenas e de que cada brasileiro, cada brasileira tem sangue indígena, nas veias ou nas mãos.

Um bom começo para nos despirmos da mentalidade colonizada que nos constitui é conhecer. Sim conhecimento liberta! Quantos intelectuais indígenas você conhece? Sim, intelectuais! Reivindicamos o termo para se referir “aos filósofos da oralidade”, sábios, jovens e anciões[2], produtores de conhecimentos e de infinitas formas de tecer a vida. Pensadores e pensadoras que cada vez mais vem se ocupando, também, da escrita compartilhando conosco suas filosofias e suas lutas. Para citar alguns e algumas: Ailton Krenak, Daiara Tukano, Eliane Potiguara, Fernanda Kaingáng, Kaká Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Davi Kopenawa, Sonia Guajajara, Cacique Raoni, Sama Hani Kuî.

[1]Sobre preservação da biodiversidade e povos indígenas sugerimos: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/faq/tis-e-meio-ambiente
[2]Sobre este tema sugerimos o artigo: Intelectuais Indígenas, Interculturalidade e Educação de Maria Aparecida Bergamaschi, Revista Tellus, ano 14, n. 26, jan./jun. 2014.

Fernanda Kaingáng, por exemplo, foi aprimeira indígena a conquistar o título de mestra em direito no Brasil (Universidade de Brasília). Em uma entrevista de 10/05/2018 Fernanda nos lembra: “O Brasil é signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica, criada na ECO-92, [no Rio de Janeiro], e 20 anos depois o que temos? Biopirataria consentida pelo Estado. O açaí foi registrado? Não. Organizações Não Governamentais (ONGs) tiveram que fazer o Japão revogar o registro da patente, porque o governo brasileiro não fez nada. O “cupulate”, chocolate de cupuaçu, também foi registrado pelo Japão. Isso é omissão. Propõem um biodiesel e o que ele tem de “bio” é sangue. O etanol tem sangue indígena. A produção de cana de açúcar, quando é mecanizada, vai caindo. Então, para eles, é mais produtivo ter a mão de obra humana, que é escrava e feita em terras indígenas que deveriam estar demarcadas e não estão. A sociedade brasileira manteve os padrões coloniais de racismo, de inviabilização das “minorias”, de exclusão.”[3]

Davi Kopenawa Yanomami nascido em 1956 é escritor, xamã e líder político yanomami, no livro belíssimo “A queda do Céu”, diz: “O que fazem os brancos com tanto ouro? Por acaso, eles comem?“Não sou um ancião e ainda sei pouco. Entretanto, para que minhas palavras sejam ouvidas longe da floresta, fiz com que fossem desenhadas na língua dos brancos. Talvez assim eles afinal as entendam, e depois deles seus filhos, e mais tarde ainda, os filhos de seus filhos. Desse modo, suas ideias a nosso respeito deixarão de ser tão sombrias e distorcidas e talvez até percam a vontade de nos destruir” Davi Kopenawa (p. 76).  No capítulo “Paixão pela mercadoria” Davi Kopenawa   faz uma crítica ao fetichismo capitalista comparando a forma como os brancos despendem todas as suas energias para acumular cada vez mais coisas, enquanto, para os Yanomami, a única coisa que faz sentido é fazê-las circular. Entre eles, depois que alguém morre, considera-se que as coisas que sobram carregam em si traços do morto e, exatamente por isso, devem ser destruídas, para aplacar a saudade dos que ficaram.“No começo, a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. […] Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. […] Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido debaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grandes quantidades. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. […] Foi com essas palavras das mercadorias que os brancos se puseram a cortar as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios. (p. 407) “O valor de nossa floresta é muito alto e muito pesado. Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes. […] Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob as águas e os humanos têm um valor importante demais para todas as mercadorias e o dinheiro dos brancos. Nada é forte o bastante para poder restituir o valor da floresta doente.[4]

Daniel Munduruku, nascido em Belém, PA, filho do povo Indígena Munduruku é formado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia, doutor em Educação pela USP e pós-doutor em linguística pela UFSCAR. Seu livro Meu avô Apolinário foi escolhido pela Unesco para receber Menção honrosa no Prêmio Literatura para crianças e Jovens na questão da tolerância. Defende que a palavra “índio” remonta a preconceitos – por exemplo, a ideia de que o indígena é selvagem e um ser do passado – além de “esconder toda a diversidade dos povos indígenas”.  “[…] quando a gente comemora o Dia do Índio, estamos comemorando uma ficção.” Reflexo disso são celebrações da data feitas por escolas, com uma “figura com duas pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de triângulo”. “É uma ideia folclórica e preconceituosa.” Nos ensina que: “[…] Somos a continuação de um fio que nasceu há muito tempo atrás… vindo de outros lugares…iniciado por outras pessoas… completado, remendado, costurado e… continuado por nós. De forma mais simples poderíamos dizer que temos uma ancestralidade, um passado, uma tradição que precisa ser continuada, costurada, bricolada todo dia.” (MUNDURUKU, Daniel. Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória. São Paulo: Nobel, 2005, p. 24.).[5]

Num tempo histórico difícil em que no Brasil e no mundo nos deparamos quase impotentes com toda forma de atrocidades que revelam a força de um sistema global regido pela ganância, destruição dos ecossistemas e com permanente ameaças a vida, olhar para a diversidade humana, aprender com as diversas tradições de pensamento, reorientar estas tradições aprendendo com elas em busca de uma convivência mais amorosa entre todos os seres parece uma luz no fim do túnel. Que não deixemos para fazer isso tarde demais, já é passado muito tempo…

Como ensina a filosofia guarani, os caminhos que nos conduziram ao mal viver “são frequentemente revistos percorrendo uma história regressiva dos nossos erros e desvios – guerras, economias de mercado, capitalismo, ditaduras, consumismo, individualismo, empobrecimento – mas, somos de verdade conscientes de que estes caminhos não podem ser simplesmente ‘des-caminhados’, apagando as ingratas pegadas dos nossos ‘pecados’? A queixa saudosa somente não abre caminho para o futuro.” [6] Na filosofia do bem viver guarani é necessário revermos o modo de ser e estar no mundo (tekó) buscando a experiência concreta de tekó porã, ou seja, a boa maneira de ser e viver. Tekó Porã é interrelação, reciprocidade. Como diz Bartolomeu Meliá: “Os povos e nações indígenas da América são a memória de nosso futuro e, se não existissem, teria que inventá-los. Como todos nós que já estamos na hora de inventar-nos novamente.” 

3]Fonte:https://amazonia.org.br/2018/05/esquecimento-dos-povos-indigenas-e-proposital-diz-primeira-india-mestra-em-direito-no-brasil/
[4]Fonte: A Queda do Céu: Palavras de um xamã Yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert. São Paulo: Companhia da Letras, 2015.
[5] Ver também: http://danielmunduruku.blogspot.com/p/entrevistas.html
[6] Bartomeu Meliá: http://www.raiz.org.br/o-bem-viver-guarani-teko-pora

28 de junho de 2019 – Gisele Moura Schnorr

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