ALINHAVAR PALAVRAS

In memoriam

Há momentos em que a voz embarga e a escrita não toma forma. Não tenho nada a dizer?

Silencio. Me ouço. E esse tempo é meu. Só meu, não é do mundo ou dos que me rodeiam. Recolher-se. Calar-se por algum tempo em meio as verborragias cotidianas, não por omissão ou emudecimento, mas por um estar em mim. Trata-se de tempo interior, do sentir, ouvir-se, perceber-se e, porque não, de busca de palavras.

Silenciar-se em meio a ruídos. Violentos ruídos diante dos quais não há justificativas ou explicações racionais, pois como dizia Eduardo Galeano, em “A infância como perigo”[1], “os fatos zombam dos direitos”.

Os fatos zombam do direito de existir e diante dos fatos, muitas vezes, faltam palavras, mas não emudeço. Em meio ao silêncio ou aos ruídos há comunicados, afinal a linguagem nos constitui.

O que diz seu, nosso, silêncio diante dos fatos?

O silêncio é linguagem e contém múltiplos significados. Diante da pergunta “Não tenho nada a dizer?” encontro, não uma resposta, talvez, o problema: A Cultura do Silêncio!

O ruído em questão foi de bala! Bala de revolver! Bala de fuzil!

Era sábado à tarde, 14 de setembro, convidei uma amiga e fomos tomar um café. Era mais um dia, um final de tarde em boa companhia. Ao chegar em casa recebo a notícia de que na Estação Ferroviária, centro cultural e histórico da cidade, onde ocorria uma festa, uma mulher teria sido assassinada. Enquanto tomávamos um café, a poucos metros deste local, onde conversávamos, também, sobre mulheres, relações de gênero, violência contra as mulheres, mais uma era assassinada.  Mais uma!

Rosane Aparecida Guis, 31 anos, mãe de três crianças, trabalhava na festa quando foi assassinada a tiros pelo seu ex-marido que em seguida se suicidou.

Rosane Aparecida Guis! 31 anos! Mãe! Mulher! Filha! Irmã! Trabalhadora do campo! Após viver anos de um relacionamento abusivo, violento, morava com seus pais. Ela e seus filhos tinham “medida protetiva” contra o ex-marido após inúmeras ameaças e agressões.

Seu assassino era o pai de seus filhos, foi seu companheiro, seu esposo, com quem dividiu boa parte de sua juventude e provavelmente de seus sonhos. O pai de seus filhos, um “cidadão comum”, para alguns “cidadãos de bem”, que provavelmente construiu seus ideais de masculinidade tendo por princípio a noção de que mulheres são propriedade, devendo ser submissas. Não se trata de um louco ou doente, mas de um homem abusivo, violento, machista. Produto de uma sociedade abusiva, violenta e machista.

A exemplo da naturalização desta construção social: um feminicídio debaixo de nosso nariz! E a festa segue!? A festa seguiu… E assim segue o baile… mais uma! Mais uma! Só mais um número… Se isso não te choca. Se não te emudece. Olhe-se no espelho. Repare no que vê. Se do outro lado há um ser humano e de que tipo.

Rosane morreu por ser mulher ao estar tentando colocar fim a um longo ciclo de violência em que ela e seus filhos viviam. “Os fatos zombam dos direitos!”.

Rosane tinha o direito de viver! Ela lutava por isso! Buscou ajuda! As instituições que deveriam protegê-la falharam. Enquanto o machismo seguir fazendo vítimas instituições de todas as áreas (saúde, educação, segurança pública, cultura) deveriam assegurar direitos, restringir ao máximo os danos físicos e emocionais da violência. Mas os fatos zombam dos direitos! Cadê o direito à vida das mulheres?

O silêncio diante de fatos como este, assim como do assassinato da menina Ágatha Félix, de 8 anos, morta com tiros de fuzil no Rio de Janeiro, dia 20, não é de introspecção ou autoconhecimento. Este silêncio é constituído de “nós” na garganta diante do que temos nos tornado como sociedade. Nos remete a cultura do silêncio que está nas origens do povo brasileiro e sua “quietude” diante de sua história.

Paulo Freire, no livro “Educação como Prática da Liberdade”[2], dedica-se ao tema da cultura do silêncio ao abordar a inexperiência democrática do povo brasileiro e destaca que a tradição colonial, autoritária, escravagista gestou um país que não experimentou um senso de comunidade, de participação coletiva na busca de solução de problemas comuns, fato que leva a outros problemas como o assistencialismo, paternalismo e populismo. Trata-se de um país com um povo assujeitado, negado, submisso.

A experiência comunitária, de busca de solução coletiva para os problemas, da responsabilidade de todos e todas pelas mazelas que vivemos, é um dos elementos fundamentais na construção de sujeitos democráticos, na transformação de ações em sabedoria democrática. Mas não somos sábios…

A cultura do silêncio amordaça, tolhe a voz, distancia as pessoas as fechando na incomunicabilidade. A força da cultura do silêncio se expressa quando o Estado se omite da promoção do debate público e da promoção de políticas públicas que assegurem direitos.

Quando vozes são silenciadas para que outras sejam ouvidas a cultura do silêncio se fortalece. Quando a festa segue após um feminicídio, não interessa quais sejam as justificativas, reafirma-se a cultura do silêncio que naturaliza a violência contra mulheres e crianças. O patriarcado segue em festa e os fatos seguem zombando de direitos!

Se uma criança é assassinada em nome de uma política de segurança pública não só os fatos zombam do direito, está tudo errado! Não há mais direitos! Falhamos como humanidade! Mas como diz o poeta[3]: Faz escuro mas eu canto…

Posso me silenciar, mas não me calo.

In Memoriam de Rosanas, Ágathas, Andriellys, Renatas, Marias,Lindamires, Angélicas, Tatianas, Julianas, Jéssicas e todas que tombaram vítimas do machismo e da cultura do silêncio.

[1] Revista Atenção! – agosto/1996.

[2]FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 70-71.

[3] Thiago de Mello

27 de setembro de 2019 – Gisele Moura Schnorr

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