COLUNISTAS

Sobre volta às aulas, lições de casa e confluência

Chegou fevereiro e, com ele, de modo presencial, híbrido ou online, a tradicional volta às aulas. Isto me lembra uma fala de minha mãe e de outras mães quando eu era criança: “- Agora começam as minhas férias.” …tempos em que mães eram educadoras e não recreadoras e professoras de seus filhos? Anos e anos se passaram e muito poderia se discorrer sobre esta fala, mas o foco deste texto se refere às mudanças substanciais que de lá para cá ocorreram. Qual a mãe ou pai que hoje encararia a volta às aulas de seus filhos como suas férias? A eles cabe, além das atribuições inerentes e relativas à função materna e paterna, escolher a escola, fazer a matrícula ou rematrícula, providenciar uniforme, material escolar, transporte. Estes são os itens sazonais da vida escolar, mas a estes confundem-se o cotidiano das lições de casa. Estas tarefas inerentes à função dos alunos passaram a ser também da família, sobretudo das mães, caracterizando uma situação de confluência que, segundo Fritz Perls, psiquiatra alemão, é um estado de fusão ou ausência de fronteira de contato de uma pessoa para outra. Neste caso, o self da pessoa não é delimitado, pois há ausência de discriminação eu/meio, eu/outro
A delimitação de funções na tríade escola/família/aluno estão embaçadas e confundem quem tem que se comprometer com o quê e a quem cabem as funções relativas à vida escolar de crianças e adolescentes.
Definindo rapidamente os três elementos desta tríade, temos a família, a quem cabe a educação informal, à qual cabe a transmissão de valores como justiça, solidariedade, saúde, respeito mútuo, primeiro patamar de socialização, a familiar. Estes aspectos são a base da construção da cidadania em cada indivíduo.
A escola, responsável pela educação formal, é instituição fundamental para o desenvolvimento do indivíduo e sua constituição. Com objetivos e metas determinadas, emprega e reelabora os conhecimentos socialmente produzidos, com o intuito de promover a aprendizagem e socialização, em seu segundo patamar, o social.
Escola e família são responsáveis pela transmissão e construção do conhecimento culturalmente organizado e propulsoras dos processos evolutivos, ou seja, do crescimento físico, intelectual, emocional e social das pessoas.
Impossível separar estas duas instituições do terceiro elemento da tríade, o aluno, pois este, oriundo da família, constitui a finalidade da existência da escola. Ao aluno cabe o papel de ir para a escola e estudar. Esta ação se dá pela participação ativa nas aulas, seja com atenção ao que está sendo ensinado, seja com perguntas aos professores, por exemplo. Em casa, cabe a ele comprometer-se com a realização das tarefas acadêmicas para consolidação de sua aprendizagem.
Feitas estas definições teóricas e técnicas (anacrônicas?) passemos a refletir sobre a prática dos papeis relativos a cada um dos elementos acima mencionados.
É aqui que encontramos um freqüente equívoco que compromete todo processo ensino-aprendizagem, bem como o processo de construção da responsabilidade com seu papel como aluno, no caso da escola, mas também com outras responsabilidades que fazem parte da vida humana e sobretudo da vida cidadã.
Em rodas de conversa, em toda parte se ouve que a vida escolar das crianças está cada vez mais estendida à vida familiar. Claro é que estas duas instituições são responsáveis pela educação das crianças. À família cabe a educação informal e à escola cabe a educação formal, como já visto. Fato é, também, que muitos pais e responsáveis passaram a entender que a lição de casa de seus filhos faz parte da sua responsabilidade, deslocando lugares e funções e minimizando o lugar e a capacidade das crianças em se responsabilizarem por sua parte nas funções da tríade. Cada vez mais comum é o fato da criança não conseguir discernir que lembrar que tem lição de casa e fazê-la é responsabilidade sua. Não raro, os responsáveis entendem que precisam perguntar aos filhos se há lição para fazer. Ora, a criança esteve na aula e, sendo assim, sabe se tem ou não lição de casa. Qual a função desta pergunta, então? “-Ah, mas se eu não perguntar, ele/a não faz…”. Até existem grupos no whatsapp para mães ajudarem-se a saber que lições o filho tem, que página da apostila deve ser estudada, etc. Aqui vemos uma superposição de papéis que desresponsabiliza a criança de sua obrigação escolar. E quando chega o período de provas? Daí tem (os) que estudar! E lá vão os pais, muitas vezes, debruçarem-se, de novo, sobre as tarefas que cabem aos filhos. Não se trata de uma ajuda ocasional e necessária, perfeitamente cabível, mas de um super funcionamento materno/paterno que leva a um subfuncionamento da criança, que lhe enfraquece a possibilidade de ocupar seu lugar e exercer sua função e responsabilidade de aluno. A preocupação é de que as tarefas sejam cumpridas e apresentadas aos professores, secundarizando a importância do exercício que propicia e fortalece a aprendizagem. É importante lembrar que para a realização de uma tarefa, duas instâncias precisam entrar em ação: pessoa e processo. Uma tarefa é realizada por alguém que desenvolve um processo para esta consecução. Só então o produto final, ou seja, a realização da tarefa fará sentido. Tarefas escolares são responsabilidades do aluno e, como fica sua autoconfiança e senso de responsabilidade, se ele não se percebe protagonista de sua aprendizagem? Se precisa ser lembrado daquilo que é dele, como constituirá autonomia e entendimento de qual é e será seu papel no mundo, papel de cidadão, responsável e capaz não só de usufruir, mas de contribuir com a vida em sociedade? Antes de entrarmos nesta reflexão, pensemos… onde estão, neste momento, muitas das crianças que precisam que seus responsáveis lhes lembrem de fazer suas obrigações escolares? É quase certo que a resposta seja esta: estão em seus tablets, celulares ou computadores jogando, sem que nenhum adulto tenha que lembrá-los e ajudá-los nesta tarefa a superar os desafios que fazem parte destes jogos. Aqui não há confluência.

11 de fevereiro de 2022 – Maris Stela

Clique para comentar
Sair da versão mobile