CULTURA

Democracia em vertigem

O filme Democracia em Vertigem, de Petra Costa, acaba de estrear na Netflix, aliás está sendo distribuído pelo serviço de streaming, o que potencializa ainda mais os efeitos almejados pela cineasta: um filme bastante didático, agarrado no lado emocional, para gringo ver e entender o caos político que se tornou este país após o golpe contra a presidente Dilma em 2016 – ou, mais precisamente, o golpe contra a democracia de 16.
Petra desenvolve todo seu documentário em primeira pessoa, se colocando como objeto da história. Algo que parecia muito mais pertinente em seu primeiro filme, Elena. E que aqui soa como jogo simplista de emoções. Algum sentido há em, logo de cara, ela declarar a dicotomia de ser neta dos fundadores da Andrade Gutierrez e filha de guerrilheiros exilados do período da ditadura militar. Talvez o problema resida na quase vergonha dessa elite familiar que torna o filme uma espécie de samba de uma nota só, em que até os momentos de crítica ou autocrítica dos entrevistados do Partido dos Trabalhadores soa artificial e superficial.
Falta ao filme um posicionamento mais assertivo e dizer que sim, apesar da balbúrdia que virou o Brasil e de não vivermos em uma democracia (depois da extensa divulgação dos áudios da lava-jato pelo Greenwald a gente não tem mais como discutir ou justificar a prisão do ex-presidente Lula), os governos de esquerda que ficaram por tanto tempo no poder falharam em fazer as reformas mais básicas, falharam na regulamentação da mídia, falharam no contato com as bases.
Democracia em Vertigem passa rapidamente por esses pontos, em falas breves de Lula, Dilma e outros membros do partido. Mas se concentra mais numa narrativa que às vezes soa explicativa demais, às vezes soa brega com citações bobas. O poder que Petra encontra em algumas imagens é muito maior do que o texto, principalmente na imagem da posse de Dilma, com Temer separado dela e de Lula tentando se colocar nas fotos, a cisão entre partidos que a imagem deixa mais clara do que qualquer texto que ela pudesse utilizar nesse cansativo e extenso voice-over que é o filme.
Porém, isso não justifica as críticas à voz de Petra Costa. A utilização de narração não é das melhores ferramentas e o texto não ajuda muito? Sim. A voz dela ser aguda ou qualquer outro adjetivo é uma crítica pertinente? Não. É uma crítica essencialmente masculina, espalhada por diversos perfis de Facebook e jornais de renome. E isso aí é machismo mesmo. Gente que quer a credibilidade de uma voz profunda e nem repara que está repetindo um comportamento que vem lá dos gregos, de muitos séculos atrás.
A sensação maior é de que o filme se beneficiaria de alguma edição, talvez uns vinte minutos a menos, cortando as inúmeras cenas dos bonitos movimentos de câmera pelo palácio vazio (á noite, á tarde, ao amanhecer, ao entardecer, tem todas as mudanças de luz imagináveis) com a narração didática de Petra que acrescenta muito pouco a história que ela decidiu contar. Os momentos furtivos em que vemos personagens chave dessa história dialogando ou as entrevistas ou as imagens de arquivo tem muito mais potencia do que o dispositivo do V.O. ou que subjetivação da História – agora com agá maiúsculo mesmo. Não digo que as coincidências entre a mãe de Petra e a presidente Dilma não sejam interessantes, que coloca-las juntas não seja uma estratégia de atingir pelo afeto, mas parecem não caber exatamente neste filme. A impressão que dá é que existiam muitos filmes possíveis no extenso material filmado pela equipe, mas que as escolhas ficaram no meio do caminho e, por isso, há mesmo vários filmes possíveis dentro de Democracia em Vertigem, alguns melhores que outros. Mas quando o filme funciona, quando a imagem dita o tom ou a entrevista é contundente a gente consegue entender melhor o que poderia ter sido.
O que sobra é a certeza do grande potencial de Petra Costa, que ainda é jovem e com certeza vai fazer filmes cada vez melhores, cada vez mais importantes. O que não tira a suma importância deste, por mais defeitos que possua. Se é para gringo ver, a notícia requentada do nosso caos contemporâneo, é possível que funcione. E precisamos continuar gritando ao mundo, com as ferramentas que tivermos, o Brasil já não é uma democracia. Se a ferramenta for a arte que o atual governo quer destruir, tanto melhor.

28 de junho de 2019 – Nina Rosa Sá

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