PROJEÇÕES DA HISTÓRIA

A escravidão como chaga de toda a espécie humana

Qual será a relação existente entre um navio negreiro abarrotado de africanos escravizados, que cruza o Atlântico em direção às costas brasileiras, e um castelo digno de contos de fadas, na longínqua e bela Dinamarca? Ou então, entre os grilhões que mantinham cativos presos e obrigados ao trabalho até o final de seus dias, e a industrialização que daria à cidade de Liverpool os ares de modernidade que se tornariam sua marca e atrairiam, como moradores, migrantes como os pais e avós de Ringo, George, John e Paul, componentes da maior banda de rock do século XX – os Beatles?
Pois é, caros amigos leitores, não deliro nem faço piada com a escravidão, um dos temas mais graves e tristes dentre todos os abrangidos pela pesquisa histórica. Liverpool, na Inglaterra, era pouco mais que uma modesta vila de pescadores até o início do século XVII. Foi por essa época que se tornou sede de algumas das maiores e mais ricas companhias de tráfico de escravizados do mundo, cresceu, enriqueceu e, cento e cinquenta anos mais tarde, se tornou epicentro da primeira revolução industrial. As fábricas então estabelecidas e seus novos postos de trabalho – precários e de baixos vencimentos, atraiu famílias de todo o país e da Europa, em um processo que levou à cidade os antepassados dos Beatles, banda da qual gosto imensamente aliás.
No que toca à Dinamarca, grande parte da nobreza e da nascente burguesia do país também lucrou alto com o comércio de mão de obra cativa africana. De fato, são conhecidas as expedições militares realizadas para a tomada e controle de importantes entrepostos de tráfico na costa africana, alguns dos quais tomados dos próprios portugueses. Essas feitorias representavam pontos nodais do comércio de gente africana, servindo como receptador dos aprisionados nas guerras do interior, e como porto de embarque dos “tumbeiros” (como eram chamados os navios negreiros, devido à alta mortalidade verificada durante a travessia atlântica) em direção ao sul dos Estados Unidos, ao Caribe ou às lavouras brasileiras. Laurentino Gomes nos conta, no segundo volume de sua trilogia Escravidão, que houve décadas nas quais os traficantes dinamarqueses estiveram entre os mais ativos do mundo. Os lucros oriundos do comércio então realizados foram revertidos em belas construções de estilo romântico que podem ser visitadas pelos turistas até hoje, nas proximidades de Copenhagen e no interior do país.
Responsável pelo aprisionamento de mais de doze milhões de seres humanos em terras africanas, o tráfico intercontinental de escravos representou, durante pelo menos trezentos anos, uma das atividades comerciais mais lucrativas do mundo. Não foram poucos os investidores que obtiveram lucro com o sofrimento alheio, entre os quais destacam-se grandes nomes da filosofia, da política e da cultura europeias. Pesquisas recentes têm conseguido remontar as origens da riqueza de importantes industriais e banqueiros ingleses a essa operação nefasta, e mesmo na Alemanha membros da elite política – os junkers – na primeira oportunidade tornaram-se donos de imponentes navios que seriam empregados no transporte de escravizados. Não é exagero afirmar que poucos foram aqueles que, entre os séculos XVIII e primeira metade do XIX, principalmente, tornaram-se ricos sem envolverem-se, direta ou indiretamente, com o tráfico.
O Brasil, obviamente, possui grande parte de responsabilidade na tragédia humana representada pela escravização de africanos, uma vez que foi para suas fazendas que a maior parte dos prisioneiros foram enviados para terminar seus dias no eito – cerca de seis milhões, dentre os quais 4,2 milhões desembarcaram nestas terras, tendo os restantes 1,8 milhões perecido durante a travessia. Mas não foram apenas brasileiros e portugueses os responsáveis por tal hecatombe. Praticamente todos os Estados modernos europeus, americanos e africanos, e mesmo alguns asiáticos, tiveram algum envolvimento com essa prática. A escravidão é uma chaga que macula o sangue brasileiro, mas não só este. Deve ser tomada, também, como uma vergonha para toda a espécie humana, sendo difícil imaginar algum acontecimento dos últimos dois séculos que não esteja vinculado, em algum grau, com sua realização.
Este é um reconhecimento que ganha cada vez maior força e justificação. Os movimentos de derrubadas de estátuas ocorridos recentemente na Europa e na América do Norte nada mais são que sintomas desse processo. Ruas, praças e mesmo cidades encontram-se em processo de mudança de denominações pelo simples fato de que seus moradores não aceitam mais idolatrar pessoas e instituições envolvidas com a degradação e extermínio de tantas vidas humanas. No Brasil, por outro lado, entre argumentos indignos do menor respeito que afirmam ter sido a escravidão um “mal menor” na história do país ou, o que é ainda mais vergonhoso, de que os africanos teriam sido escravizados praticamente “por vontade própria” e, nessa condição, teriam chegado aqui, continua ainda por ser feito um debate mais amplo sobre as reais implicações dessa violência colossal na formação desta sociedade. Debate que abandone os mitos e preconceitos construídos e reforçados ao longo de séculos para tratar apenas e tão somente da realidade cotidiana de quem foi tirado à força de suas terras e trazidos em grilhões nos porões de navios infectos, nos quais a simples sobrevivência teve de ser paga com um grau até então inaudito de sofrimento.
Se é verdade que a escravidão é uma vergonha universal, também é verdade que este país, que deve sua própria formação ao trabalho realizado por milhões de mãos e pés cativos, mais uma vez tem confirmado seu empenho em ocupar os lugares de menor destaque entre as sociedades que tem refletido sobre o assunto. De fato, à merecida posição de destaque ocupada por intelectuais e pesquisadores que denodadamente têm se dedicado ao estudo da escravidão em seus múltiplos desdobramentos, opõe-se uma certa apatia e indiferença pelo tema nos diversos estratos sociais, principalmente das classes médias e das mais abastadas. Como repete o jornalista Eduardo Bueno, com insistência, em seu influente canal do YouTube, “povo que não sabe de onde veio não tem como saber para onde vai”. Verdade inquestionável que, fato de difícil compreensão, os brasileiros insistem em ignorar comprazendo-se, ao invés, de repetir os mesmos erros do passado com a mesma inocência e utilizando as mesmas desculpas pueris já amareladas e desgastadas pelo uso. Chegará o dia em que a sociedade brasileira finalmente abandonará essa postura infantil para encarar-se de frente, desnuda, no espelho da História, como outros povos já fizeram e seguem fazendo? Difícil responder que sim. Mas a obrigação de ofício me impõe o dever de seguir acreditando. Até a próxima!

22 de outubro de 2021 – Vitor Marcos Gregório

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