PROJEÇÕES DA HISTÓRIA

Estados falhados

A expressão “Estados falhados” (tradução livre do inglês “failed States”) refere-se àqueles Estados que, em termos simples, falharam em oferecer a seus cidadãos garantias básicas que, em tempos idos, justificaram a invenção do mito político estatal que hoje impera sobre praticamente todas as sociedades humanas do planeta. Trata-se de países que não são capazes de oferecer aos habitantes de seu território educação básica, segurança, infraestrutura e condições dignas de sobrevivência que, no limite, levam seres humanos a renunciar liberdades em nome da convivência no interior de um grupo no qual não escolheram nascer. E esse é um ponto fundamental da estrutura internacional criada e consolidada ao longo dos séculos XVII e XVIII, e tornada universal nos séculos XIX e XX. Você nasce em um lugar, esse lugar pertence a um grupo humano específico (a nação), e essa soberania é reconhecida por outros grupos que, em nome do princípio de não intervenção em assuntos alheios, assume que nada tem a ver com os problemas existentes alhures. O que importa é a sobrevivência da minha família. Do meu grupo. Da minha nação. Sou parte da espécie humana apenas porque convivo em uma comunidade amplamente reconhecida por outros humanos. Não me incomodem aqui, que não os incomodarei aí. Princípio básico que, de tão óbvio nos dias que correm, são aceitos por significativa parcela da população mundial sem qualquer contestação ou, mesmo, reflexão.
Acontece que esse sistema possui fraturas sérias, sendo o principal responsável por relegar bilhões de seres humanos à mais abjeta miséria, e por ameaçar lançar toda a espécie homo sapiens em uma hecatombe à qual mesmo os mais ricos e poderosos encontrarão dificuldades para sobreviver. No momento em que escrevo estas linhas, milhões de pessoas abandonam às pressas suas casas no Afeganistão, apenas com a roupa do corpo, na desesperada tentativa de fugir ao avanço do mesmo grupo islâmico radical que, sendo responsável pelos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, provocou a intervenção militar internacional encerrada há algumas semanas, quando foi anunciada a retirada total dos militares britânicos e estadunidenses daquele país. A novidade foi o convite aguardado há duas décadas pelos membros do Taliban que, imediatamente, se lançaram em uma ofensiva que retoma rapidamente cidades inteiras e infringe aos afegãos o terror das regras arbitrárias, das execuções em massa e da deflagração de vinganças lentamente urdidas ao longo dos últimos vinte anos. A justificativa apresentada por Joe Biden para a retirada assenta sobre uma lógica inatacável, dentro do sistema acima apresentado. Os Estados Unidos gastaram 1 trilhão de dólares durante a ocupação, sofrendo com a morte de 2400 dos “seus soldados”. O Afeganistão, concluiu o presidente, é o país dos afegãos. Se estes o desejam para si, devem lutar por ele.
Ao mesmo tempo, notícias de que mais um terremoto devastou o Haiti sem dar tempo aos seus cidadãos de se refazerem do assassinato de seu presidente, ocorrido há pouco mais de um mês, tomam os jornais do mundo todo. Milhares de mortos (número que tende a crescer rapidamente), destruição generalizada, e outros milhões de seres humanos foram colocados, novamente, na posição de precisar implorar por ajuda internacional para continuarem sobrevivendo. Na época do assassinato do presidente Jovenel Moïse vários analistas e militares brasileiros, envolvidos na missão de paz liderada pelo país no início do século XXI, foram convidados a comentar o fato. Perpassando todas as falas, as mesmas ideias: é obrigação dos haitianos enfrentar seus problemas e construir um Estado melhor para si, seus filhos e netos. Ideia presente, também, em livros, artigos e entrevistas que buscam apontar soluções para outros milhões de famintos que tiveram a má sorte de nascer em regiões miseráveis da África e da Ásia, apontados como os únicos responsáveis por buscar soluções para suas vidas sem, contudo, recorrer à “decisão precipitada” de emigrar – afinal, a eles deve ficar sempre muito claro que não serão bem recebidos em qualquer dos países ricos do ocidente. A cada um a responsabilidade por seu bem-estar, a cada Estado a soberania para decidir o que considerar mais conveniente a seus cidadãos. E, assim, chegamos ao fato assombroso de que mais da metade dos oito bilhões de seres humanos que, hoje, respiram sobre o planeta passam fome, vivendo uma vida que poucos ousariam argumentar que é digna de ser vivida, que dirá agradável de ser apreciada.
O problema apenas parece ganhar seriedade quando se insinua aos privilegiados nos sinaleiros das grandes – e pequenas – cidades; nos milhares de botes precários que atravessam o Mediterrâneo todos os anos; ou nos crimes urbanos cometidos por miseráveis e noticiados com sensacionalismo nos noticiários da televisão. Passado o impacto da novidade, cessa também a afetação dos que possuem casa, carro, e comida sobre a mesa. Acontece que algo maior está se tornando, a cada dia que passa uma realidade que mesmo os mais empedernidos negacionistas começam a encontrar dificuldades para ignorar. Temporais e enchentes nunca antes vistos em regiões ricas da Alemanha. Mortes e destruição nas grandes metrópoles da China. Desertificação na caatinga brasileira e ondas de frio prolongadas e inesperadas na região sul do país. Sinais de mudanças climáticas que, alertam os cientistas, se encontram em estágio avançado e que dificilmente poderão ser remediadas no futuro. Outras já ocorreram no passado, é verdade. Apenas para ficar em uma citação, lembro daquela que, tomando de assalto a Europa de fins do século XIII, contribuiu poderosamente para o desencadeamento de uma crise de fome que matou milhões e abriu caminho para a Peste Negra, no XIV. Para o clima não existem fronteiras, não existem comunidades homogêneas, não existem nações. Todos os seres sofrem suas consequências, humanos ou não. Enquanto desapareciam aves, ursos polares, micos-leões-dourados e ararinhas-azuis, tudo parecia sob controle. Mas eis que, agora, ainda outros milhões de seres humanos, muitos brasileiros, começam a encontrar dificuldades para alimentar-se e matar sua sede. Muito em breve, teremos de atendê-los em nossas portas, clamando por auxílio ou agindo para obtê-lo à força.
Em comum a todos esses acontecimentos, identifica-se a incapacidade humana de agir, limitados todos por uma concepção de organização social que simplesmente não se mostra eficaz na resolução de problemas que dizem respeito a todos os habitantes do planeta. Analistas seguem estudando as questões afegã, haitiana, africana, asiática e climática em termos das dificuldades que estas podem trazer para “nós”, cegos a que, cada vez mais, não existe mais a clássica dicotomia “nós” e “eles”, mas apenas uma mesma comunidade terráquea universal que há de sofrer, necessariamente e muito antes do que todos imaginavam, as dores que até então acreditava-se apenas restrita a quem está longe demais para nos importarmos. A compreensão desse fato joga nova luz sobre a expressão “Estados falhados”, com a qual iniciei esta reflexão. Se falhados são todos os Estados incapazes de garantir a seus cidadãos direitos básicos que lhes possibilite viver uma vida digna e prazerosa de ser vivida, falhados são todos os Estados, por incapazes de compreender que sua própria existência representa um obstáculo intransponível para a resolução de problemas que dizem respeito a todos. A lembrança de que constituímos elos de uma corrente que abarca todos os seres do planeta, e a própria Terra em si, nunca foi tão necessária e salutar quanto agora. O fracasso em buscá-la em nossa memória representará a obsolescência do termo “Estados falhados” que terá de ser, muito em breve, substituído por algum outro que se refira a uma “humanidade falhada”. Até a próxima.

20 de agosto de 2021 – Vitor Marcos Gregório

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