PROJEÇÕES DA HISTÓRIA

Guerra mundial

Em Kiev e nas maiores cidades ucranianas a realidade da guerra se impõe, implacável, no exato momento em que escrevo essas linhas. O som de bombardeios se faz presente a intervalos regulares, o embate de tropas bem armadas pode ser visto – e cheirado – das janelas e praças, e a fila interminável de fugitivos entope ruas, estradas, aeroportos e estações de trem. Fotografias de corpos inertes e ruínas fumegantes ocupam os noticiários e as redes sociais, e nenhum ser humano – salvo os atingidos pelas censuras e campanhas publicitário-jornalísticas russas – pode negar que estamos diante das consequências de um dos maiores vícios da humanidade, aquele que nos define enquanto espécie desde quando descemos das árvores e começamos a andar sobre duas pernas.
Ao mesmo tempo, por toda a Rússia, filas se formam diante de bancos e supermercados desabastecidos. O rublo, moeda nacional daquele país, desvaloriza-se em ritmo acelerado e a inflação atinge níveis apenas vistos logo após a implosão da antiga União Soviética. O desemprego aumenta. A economia está em profunda contração. Transações internacionais com instituições russas estão vedadas. Consequências previstas de uma ação coordenada pelos líderes do chamado “ocidente”, denominação genérica do grupo de países liderados pela União Europeia e pelos Estados Unidos que, sem desejarem envolver-se em um conflito bélico de larga escala, procuram defender a existência soberana da Ucrânia em nome dos proclamados valores da liberdade e da democracia. Lutam, segundo afirmam, contra um tirano odioso, por vezes comparado a Hitler nas entrelinhas de discursos inflamados. É preciso municiar e defender os ucranianos sem arriscar o início de uma temida “terceira guerra mundial”. Acontece que, à revelia das manchetes e postagens alarmistas, ela já começou. Já está sobre nós, já nos afeta a todos. E irá definir, aos olhos dos historiadores do futuro, os destinos da raça humana pelas décadas do porvir.
Assistimos no presente momento ao embate de duas estratégias colossais. De um lado, a tentativa de submissão de um povo por meios militares clássicos, levada a cabo pela movimentação de tropas disciplinadas, da utilização de destrutivos armamentos e da instrumentalização do que há de mais moderno no campo da tecnologia. De acordo com os princípios bem conhecidos dessa prática, o sucesso se mede pela conquista de cidades e territórios, pela destruição da capacidade de resistência material do inimigo e, claro, pela comparação direta entre o número de baixas de lado a lado. De outro lado, assistimos à adoção maciça de uma política de sanções econômicas que, embora conhecidas e utilizadas em variados graus desde o século XIX, apenas agora atingiram a condição de espinha dorsal de uma ação de guerra. O objetivo, aqui, é submeter o inimigo através da destruição de sua capacidade de sustentação financeira. Após a invasão da Criméia, em 2014, o governo russo procurou antecipar essa possibilidade criando enormes reservas financeiras capazes de manter o país por meses a fio, produzindo e guardando recursos que poderiam ser utilizados em momentos de escassez.
O problema é que essa verdadeira fortaleza constituída de cifras possui, como só ia acontecer, um pé de barro até então imprevisto. O fato de que tais reservas precisariam ser entesouradas em bancos espalhados por todo o mundo, lastreadas na confiança de um sistema que, aconteça o que acontecer, sempre deveria permitir aos legítimos donos o acesso a seus bens e valores monetários. Confiança que ruiu completamente com a exclusão dos bancos russos desse mesmo sistema, que tem no chamado swift seu principal instrumento de movimentação de valores. O banco central russo não pode mais, desde a semana passada, realizar transações dentro desse sistema. Vê vedado, assim, o acesso ao colchão financeiro diligentemente construído por Putin e seus aliados ao longo de quase uma década. A surpresa demonstrada por Moscou com a adoção de tal medida demonstra bem a gravidade dessa decisão. Subitamente, a possibilidade de utilização de armas nucleares, tabu das relações internacionais desde a Crise dos Mísseis de 1962, voltou a ser brandida como uma ameaça crível. O nível das apostas subiu descomunalmente no espaço de poucas horas. Agora já está óbvio que a credibilidade do sistema financeiro global se tornou uma quimera, e não tardará até que governos que possuam receio de sofrer as mesmas sanções por conta de suas decisões passem a buscar meios alternativos de garantir sua autossuficiência. A China já ensaia seus primeiros passos nesse sentido, na constituição de uma ferramenta paralela ao swift. Embora eficaz, a marginalização econômica pode se tornar uma arma de uso único. Em sua segunda aplicação, no futuro, poderá já ter de enfrentar contramedidas igualmente eficientes. A criação de blocos rivais parece despontar no horizonte. Fica clara e configurada, desse modo, a existência de uma guerra com alcance inédito e de consequências naturalmente imprevistas.
Que se trata de um conflito global penso ser desnecessário insistir. O Brasil já se prepara para o corte no fornecimento de fertilizantes fundamentais para a agricultura, base de sua sustentabilidade econômica. Estados Unidos e Europa veem-se, cada vez mais, envolvidos em um amplo conflito que, ainda que digam querer evitar, certamente já reconhecem que está iniciado. Líderes chineses reúnem-se constantemente para decidir que medidas tomar com vistas a tirar o máximo proveito da situação, enquanto Japão e Coréia do Sul preparam-se para uma escalada que, bem antecipam, em breve baterá às suas portas. Enquanto isso, milhares de ucranianos combatem bravamente a velha guerra, enquanto outros tantos usam seus parcos recursos para buscar a segurança em terras distantes. Na Rússia, aumentam as manifestações contra o regime de Putin, mas se a história tem algo a nos ensinar, é possível acreditar que essas se transformarão, tão logo a fome se torne insuportável e disseminada, em um movimento nacionalista de massa, como já visto em outros momentos do passado. A previsão é pessimista, admito, e desejo profundamente que errônea. Mas, insisto, não é desprovida de base.
A atual guerra na Ucrânia configura-se, assim, como o primeiro exemplar de um conflito entre dois tipos de estratégia. Uma antiga, que muitos pretendem obsoleta, e outra nova, possivelmente tornada padrão nos enfrentamentos do futuro. É impossível dizer qual sairá vencedora. Talvez Putin reconheça o equívoco de seus cálculos e anuncie o fim das hostilidades, brandindo para seu público interno, através da propaganda, uma vitória que garantiria a continuidade de seu apoio político. Talvez, ao contrário, o exército russo consiga derrubar o governo ucraniano, instalar um regime submisso em seu lugar e as sanções impostas por seus inimigos diluam-se ao longo dos próximos anos, seguindo a velha lógica da busca por ganhos econômicos tão cara ao capitalismo. Independente do desdobramento, contudo, a instrumentalização do sistema financeiro internacional para fins bélicos representa a quebra de um vaso muito delicado e valioso que jamais poderá ser consertado, mas apenas substituído por outro fabricado com materiais diferentes e dotado de formato e cores, no momento, imprevisíveis. O que estamos vivendo é mais um momento decisivo dentre outros tantos que definem essa primeira metade de século XXI. Não há que falar no risco de uma terceira guerra mundial. Ela já está entre nós. Resta saber se efetivamente entrará para os anais como a terceira guerra da mesma estirpe das ocorridas há um século, ou se será a primeira de um novo tipo, aquele que definirá nossas existências daqui para a frente. Até a próxima!

18 de março de 2022 – Vitor Marcos Gregório

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