INQUIETAS PALAVRAS

Talvez, Celestino

São pontualmente nove horas da manhã em uma cidade que insiste em ser cinza. Embora alguns feixes de sol já se esgueirem entre as fendas dos prédios, uma leve neblina ainda se agarra na umidade do ar. Da janela do meu apartamento, vejo o sol e a sombra que se revezam sobre o asfalto e ouço as portas de latão que reclamam rangendo ao serem enroladas como caracóis pesados que penderão durante o dia sobre a entrada das lojas. Do outro lado da rua, uma vendedora de roupas abre com dificuldade uma porta de vidro. Quando enfim consegue entrar na loja, arruma o tapete com a ponta do pé e, ao se virar, me acena com as chaves na mão. Ao lado, o dono do bar, um senhor de idade e de boina, começa a colocar cadeiras de plástico na calçada, acompanhando o comprimento da parede – não mais coloca mesas, desde que a lei municipal julgou que seria um grande inconveniente para os passantes ziguezaguear por entre tantos obstáculos.
Na esquina, um senhorzinho, cujo cabelo branco se reflete de longe, aguarda os carros passarem até chegar o seu momento de travessia. Seus olhos se fixam no semáforo e tão logo a luz vermelha acende, coloca o sapato lustroso sobre a faixa de pedestres, um depois o outro, com passos curtos e desapressados. Por ele, mulheres com rabos de cavalo passam correndo dentro de apertados macacões de viscose segurando garrafinhas coloridas para cumprir a meta dos dois litros diários de água; ciclistas surgem e desaparecem da vista como lufadas de ar. Alheio ao galope do mundo, o senhor prossegue como se não tivesse destino nem pressa.
Mas ele tem destino e trajeto, eu conheço. Agora que está mais perto e avança vagarosamente sobre a calçada, reconheço o casaco de lã cinza sobre a camisa de gola branca e a calça social com pregas bem marcadas. Reconheço bem seus passos, mas desconheço seu nome. Talvez se chame Abelardo, Alcebíades, Celestino… são nomes que me ocorrem e que parecem cair bem a um octogenário. Contrariando minha lógica nominal talvez se chame apenas Guilherme ou Felipe. Tenho certeza, porém, de que não se chama Enzo. Gosto de pensar que se chama Celestino.
Daqui um minuto Celestino terá percorrido trinta metros de calçada e estará bem mais perto da minha janela. Ele vai cumprimentar com um leve inclinar de cabeça o homem de meia idade que passeia com seu cachorro e que vai bocejar enquanto o pet levantará a perninha para urinar nas costas de um poste. Depois, Celestino vai chegar à frente do bar e sem olhar para os lados, ignorando as cadeiras colocadas do lado de fora, atravessará a porta recém-aberta, garantindo assim a sua pontualidade de primeiro e fiel cliente do dia. Celestino dirá um correto bom dia, sem sorrir. Não precisará, no entanto, pedir um copo de café ao dono do bar, porque sabe que não se deve retirar do barzeiro o prazer de antever o desejo dos clientes antigos. É uma regra de etiqueta que eu também sigo, quando entro nesse mesmo bar, cumprimento Celestino com um aceno de cabeça e vejo o dono do bar se virar e pegar da prateleira um maço de cigarros mentolados antes mesmo que eu o peça. É um acordo tácito.
Celestino em posse do seu café retira do bolso do colete de lã o seu bloco de receitas e do bolso da camisa, uma caneta. As folhas do receituário, amareladas pelo pó dos dias e dos anos, acompanham-no desde quando a medicina era exercida em hospitais. A mão ainda desliza firme sobre o papel, mas raras vezes é requerida pelos assíduos frequentadores do local, que se repetem quase todos os dias e que desconfiam de que a receita não passará pelo balcão da farmácia.
Na maior parte do tempo, a devoção medicinal de Ceslestino cai em ouvidos descridos. Ele não se desgosta, nem se aborrece. De vez em quando ouve as queixas de um paciente que afirma ter dado mau jeito no braço e lhe recomenda um emplasto de sabiá, além de uma radiografia. Outras vezes, vagueia nos queixumes amorosos de quem já bebeu as mágoas e sabendo que para o amor não há remédio, oferece os ouvidos, sem dizer palavra. De vez em quando, para os males mais ordinários, como dor no corpo ou diarreia, escreve com letra enigmática coisas que os farmacêuticos podem vender sem receitas.
Já vacinado e sem riscos, Celestino recomenda, apenas quando consultado, que os demais frequentadores tomem os devidos cuidados durante a pandemia e parem de frequentar aquele ambiente, pois desconfia que o vírus possa ter simpatia pelo lugar e pela faixa etária avançada de todos. Quando, porém, as mesas esvaziam e as horas passam lentas sobre a mesa de Celestino, seu olhar se perde na rua, talvez pensando se os frequentadores acataram, enfim, seu conselho clínico e resolveram aguardar a pandemia esmorecer para retornarem às mesas vizinhas. Um lampejo de alegria brilha nos seus olhos de azul embaçado, mas logo se esvai.
Às dezoito horas, Celestino guarda novamente seu receituário no bolso e sai do bar a passos pacientes, como o fez também no horário do almoço. Terá cumprido sua caminhada diária e a sua jornada clínica – enquanto eu cumpri minha jornada de trabalho e não os passos do dia. Suponho, com uma grande margem de certeza, que amanhã, se não chover, ele vai atravessar a rua no mesmo horário e cumprirá com o mesmo ar impenetrável seu ofício. É tudo o que sei. As costas um pouco envergadas carregam histórias que não consigo ver da minha janela.

10 de julho de 2021 – Lorena Izabel Lima

Clique para comentar
Sair da versão mobile