LÍNGUA VIVA

A ironia como vilã

Escreveu bem meu colega Luisandro Mendes de Sousa em seu blogue que sentimos uma certa obrigação por ser “engraçadinhos” em nossos comentários na comunicação virtual. Coloque-se esse comportamento num período de eleições, acrescido de um forte embate político generalizado pelo país e mais uma boa dose da tendência do politicamente correto, e temos bombas prestes a explodir em toda a rede.
É certo que minha participação (realmente ativa) em redes sociais como facebook e twitter é bem recente; vejo, porém, com frequência, episódios em que abundam tratamentos ofensivos como reação a postagens e comentários considerados desagradáveis. Talvez seja compreensível, visto que os ânimos de tantos estão exaltados por causa de nosso momento político; parece que os brasileiros acordaram para a sua participação e responsabilidade cívica. Isso não me surpreende, pois venho acompanhando o desenrolar de ondas semelhantes em outros países.
O que tem me chamado à atenção é como as opiniões pessoais, partidárias e ideológicas interferem na leitura que fazemos do texto irônico. Hoje mesmo postei o convite para um evento que seria realizado com a presença da Senhora Fernanda Richa em São Mateus do Sul, seguido do aviso de que o evento havia sido cancelado porque a senhora em questão havia ficado presa em outro compromisso. O grau de ironia do texto não me parece acentuado, visto que há traços linguísticos que permitem ao leitor identificar as intenções de quem o escreveu; veja-se a frase “ficou presa”. Nem isso poupou-me da objeção manifestada por um receptor, que achou que eu estivesse fazendo propaganda do cônjuge da referida senhora, candidato ao Senado Federal. Só posso imaginar que a aversão que essa pessoa tem pelo candidato em questão é tão grande, que qualquer menção ao seu nome é recebida como ofensa.
Mais um exemplo com um post que transcrevo aqui: “Você já parou pra pensar na quantidade de bandidos que estão, neste momento, apenas esperando o porte de armas ser liberado pra eles poderem comprar sua arma, registrar, fazer curso de tiro e manter a licença em dia para poder começar sua série de crimes e assaltos?” Nesse texto, o autor, que desconheço, não é direto no que tenciona dizer; justamente por referir-se a um assunto extremamente delicado atualmente, ele procura brincar para não se comprometer. É claro que bandidos não fazem nada disso: comprar armas legalmente, registrá-las e tudo o mais. Se eles não o fazem, então a frase diz exatamente o contrário da realidade, eles não estão esperando o porte de armas, pois eles já possuem armas, mesmo que ilegalmente. O autor usou de ironia para dizer precisamente o contrário: os bandidos já estão armados, mas suas potenciais vítimas não estão. O que leva um leitor do post a comentar, furioso, que esse direito não deve ser dado aos bandidos, pois eles já estão se aproveitando dos cidadãos desarmados, além de xingar o autor com palavrões? Ele não achou graça, porque enxergou apenas que aos bandidos seria oferecido mais um direito.
A ironia não é usada sempre para debochar ou desmoralizar. Ela é também um recurso linguístico que nos permite abordar temas controversos de forma mais amena que se fossem tratados abertamente. Faz-se uso do humor para não precisar tratar abertamente do que se considera inapropriado ou inconveniente. Mas para que o leitor a entenda, são necessários alguns requisitos: ele precisa ter algum conhecimento sobre o assunto, reconhecer a intertextualidade e detectar a intenção do autor. Hoje o apresentador Danilo Gentili tweetou uma pesquisa: “Dos números aleatórios abaixo, qual você considera o seu número da sorte? 17 – 12 – 45 – 30”. Ué, por que esses números e não outros? Essa foi uma reação irônica, característica do comediante, à censura imposta pelo TSE, proibindo enquetes e sondagens, sob pena de multa. A ironia está sendo usada para denunciá-la.
Mencionei no início do texto que vivemos em tempos em que impera o politicamente correto e que infelizmente, a meu ver, compromete o uso que fazemos (ou podemos fazer) da ironia. Tiram-se as frases dos seus contextos para dar-lhes uma interpretação negativa e com isso atacar ou sentir-se atacado, sendo que, com a devida interpretação, nada daquilo lhe poderia ser atribuído. Escolhe-se interpretar de acordo com o seu sentimento, a sua subjetividade política ou ideológica, pouco importando o que o interlocutor realmente quis dizer. Por que digo que isso é lamentável? Porque o exercício da ironia é o exercício de uma visão crítica, ela revela relatividades, ela permite um afastamento do que é real para podermos enxergar as sutilezas.
Termino este texto com uma provocação irônica bem atual, para que os leitores examinem seu próprio grau de aceitação. As frases são, também, de Danilo Gentili: “Piadas matam. Facadas estão liberadas”.

14 de setembro de 2018 – Karim Siebeneicher Brito

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