INQUIETAS PALAVRAS

IN MEMORIAM de tantas mulheres

Era sábado em União da Vitória. Era também setembro, como agora. Antes de o sol se pôr, uma mulher se olha no espelho e retoca o batom. Pega sua bolsa e, com passos firmes, ganha a rua, caminhando com a gana e com a fúria de todos os silêncios agora despertados. Em que pensaria? Contas, alegrias, filhos, a ligação perdida de uma amiga, talvez. Nem mesmo os anjos saberiam dizer, mas qualquer pessoa que a visse teria percebido a resolução em seus olhos, cheios de designíos como uma fogueira recém-acesa. Toda ela fluía promessas de uma nova vida, que em poucas horas lhe seria subtraída.
A estação ferroviária cheirava à cevada e feriado. De longe ela ouviu o som da gaita que se abria, os ruídos de muitas vozes que se confundiam. Barracas enfileiradas ofereciam comidas, artesanatos, produtos, fotos, chopp. Foi numa delas, que a mulher chegou e se instalou para trabalhar algumas horas em meio à festa que corria. Correu os olhos pelo espaço à procura de algum rosto familiar e um lampejo de medo lhe pesou nas costas. Viu correrem crianças tantas por entre as barracas. Viu de longe casais dançando em frente ao pequeno palco onde um grupo tocava músicas regionais. Certamente, ela viu os casais de velhinhos sentados em um banco de madeira a alguns metros e sorriu quando o senhor ofereceu um pedaço de bolo para a senhora. Olhou com curiosidade para homens de camisa social que conversavam a um canto e sempre davam tapinhas nas costas um dos outros, com sorrisos esgarçados. Nesse momento bocejou, olhou o relógio e pensou que dentro de quatro horas estaria com os três filhos. Agora, contudo, atenderia tantos clientes e famílias que vinham até a barraca fazendo as horas correrem rápido.
E assim o fez. Sorriu para os passantes. Tomou uma Coca gelada. Comprou na barraca vizinha alfajores e guardou na bolsa para levar para os filhos. Falou com conhecidos e agradeceu meia dúzia de elogios que recebeu. Escondeu uma tristezinha no canto da boca, que poderia bem ser um sorriso. Ouviu alguém dizer que aquilo sim era uma festa boa, de gente de bem, apenas famílias celebrando felicidades catalogadas. A vida prosseguia. E agora prosseguiria para ela mais do que nunca. Olhou o relógio, pegou a bolsa: fim do seu turno.
Foi quando, abrindo caminho entre a multidão, ouviu a voz fatal que chamou seu nome. Não olhou para trás, pois sabia que rosto encontraria: o do homem com quem por tantos anos dividiu o mesmo leito. A mesma voz que magoava sua carne e espírito. Apressou o passo e se encaminhou para a saída. A voz do homem agora abafou todos os sons e saiu como grito. Antes que pudesse olhar, um estalido cortou o ar com chumbo e lhe penetrou as costas. Um segundo passo e um segundo estrondo, o chumbo entrando em seu corpo já paralisado que agora tombava no chão. Ali, no chão, sapatos correm, gritos se multiplicam e abrem o espaço como uma clareira. O som da gaita que silencia. Todo esse movimento é cortado por um terceiro disparo, que apaga da mulher qualquer fogueira ou sopro de vida.
Na mão do homem, sua arma põe fim à sua própria vida com um último estalido. A população em choque parece não reconhecer aquela história e olha para o quadro rubro como se fizesse parte de uma realidade distante. Nos rumores, cogitam-se os motivos de pavorosa e bestial atitude, como se motivos houvesse. Pergunta-se sobre o passado da vítima. Criam hipóteses, arregalam os olhos e lembram que com fulana também aconteceu isso. Com a vizinha também, com a empregada também, com a moça desconhecida também. São tempos violentos, dizem. Como se para mulheres alguma outra época ou era não tivesse sido violenta. Como se não fossem muitas e tantas as mulheres que se tornam notícias em páginas de jornais. Como se o fato de uma mulher exercer o direito de existir não fosse por si só tratado como um abuso, uma transgressão.
No dia seguinte, não há resquício naquele lugar de qualquer assassinato. Nada. O gaiteiro abre o fole mais uma vez, as crianças voltam a correr por onde antes havia sangue, finamente educadas para não pensar sobre esse tipo de tragédia. As pessoas recomeçam a dançar desesperadamente indiferentes e nauseantemente resignadas.
Dois anos se passaram e uma ou outra nota no jornal lamentou tudo isso. A cidade, no seu curso, continua a guardar outras Marias, Joanas, Rosanes, desaparecidas no silêncio de todos nós.

17 de setembro de 2021 – Lorena Izabel Lima

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