LÍNGUA VIVA

“Irmana, o que vês?” “Nada. Apenas o sol que vermelheja e o céu que azuleja.”

O ditado cerâmico acima é uma passagem da história “As Mil e Uma Horas de Asterix”, o herói gaulês da série em quadrinhos criada na França por Albert Uderzo e René Goscinny. Nele vemos a referência feita entre o verbo “azulejar” e a cor azul do céu. Mas será que a palavra “azulejo” vem de “azul”?
O estudo da etimologia, ou da origem e da evolução das palavras, é fascinante! Vejam o sucesso que fazem as obras do Professor Deonísio da Silva e o Guia dos Curiosos, de Marcelo Duarte. Para mim, que decidi aprofundar-me em outras áreas, o estudo da etimologia é dificílimo, pois o conhecimento popular, que de forma alguma pode ser desprezado nessa empreitada, confunde-se com termos de origens linguísticas e históricas as mais diversas. Mesmo assim, arrisco-me a pesquisar e tecer algumas linhas sobre o assunto que muitas vezes me encanta.
Esta semana vi-me diante de uma descoberta ao mesmo tempo interessante e inibidora, visto que eu esperava de mim mesma estar mais bem informada. Aprendi na escola que utilizamos letras “maiúsculas” e “minúsculas”, e esses termos continuam sendo usados na Linguística e em outras ciências; somente depois de muitos anos passamos a ser aconselhados a substituir os termos por “caixa alta” e “caixa baixa”, talvez influenciados por seu uso nos setores e profissões editoriais. Confesso que, à época, relacionei o uso dos adjetivos “alta” e “baixa” ao tamanho das letras… (Espero não ter sido a única.) Foi somente através de um documentário que aprendi que os termos “caixa alta” e “caixa baixa” referem-se aos caracteres móveis usados na tipografia, sendo que os mais usados (letras minúsculas, pontuação, espaços e algarismos) eram acondicionados em caixas mais baixas, localizadas a um alcance mais fácil; e os tipos com as letras maiúsculas, caracteres e símbolos acentuados e outros símbolos menos usados ficavam no topo, nas caixas altas, porque não eram usados com tanta frequência. Como vemos, o estudo da etimologia pode apresentar algumas armadilhas por causa de como relacionamos o que conhecemos, mas presenteia-nos com histórias pitorescas e com o conhecimento sobre os motivos por que dizemos as coisas como as dizemos.
Voltando ao “azulejo”, pode parecer que o termo provém da palavra “azul”, mas ao que indica o Professor Cláudio Moreno, não é esse o caso. O termo vem de uma palavra árabe, de som parecido, al-zuleigou al-zuleij(sendo al o artigo), que significa algo como “pedra polida”. Referia-se à arte dos mosaicos romanos. Já o nome da cor azul, forma reduzida de al-lzaward, remonta ao persa, e aparece de maneira mais similar no segundo elemento de “lápis-lazúli” (do latim Lapis, “pedra” + lzaward, “azul”).
Com frequência relacionamos os famosos azulejos portugueses com a cor azul, porque essa é a sua cor predominante. Os relatos antigos que apresentam esses artefatos, porém, não fazem referência a essa cor em particular, e mostram a presença de todas as outras cores também. A falsa etimologia desse termo, assim como a de muitos outros, não é privilégio de pessoas como nós, que não investigam regularmente os termos que utilizam. O próprio Rafael Bluteau, grande lexicógrafo da língua portuguesa, em seu dicionário, encarregou-se de espalhar a lenda de que o nome do ladrilho envernizado tomou o nome da cor azul.
Vamos confrontar mais alguns significados em que somos enganados pelo senso comum e por deduções equivocadas. Já ouvi dizer que a palavra “arquiteto” vem de “arco”; tal dedução deve-se ao fato de muitos arquitetos projetarem construções com arcos. No entanto, as palavras pertencem a famílias diversas: “arquiteto” é formado pelo elemento grego arqui, que significa “o maior, o principal”, mais o radical tecton, “marceneiro, construtor”. Já a palavra “arco” vem do latim arcus, que também é usado para denominar o instrumento usado pelos arqueiros, em português.
A determinação satisfatória da etimologia também pode levar tempo, e ser discutida com a apresentação de diferentes teorias, sem que tenhamos certeza de que algum dia saberemos ao certo a origem da palavra. Como exemplo, temos a palavra “ovação”. O senso popular dirá que tem algo a ver com ovo, e para justificá-lo mencionará a história da cerimônia de caserna em que o vencedor era saudado com uma chuva de ovos. Já os linguistas competem com, pelo menos, duas versões: Por um lado, a ideia de que a ovação seria a comemoração de uma vitória militar de menor importância na qual se sacrificava uma ovelha (do latim ovis); contestando essa ideia, a de que “ovação” vem do verbo ovare, que significa “lançar gritos de entusiasmo e de alegria”. Faz sentido, principalmente se observarmos que Eça de Queiroz, em “A Relíquia”, utilizou o termo “ovante” para dizer “triunfante, vitorioso”.
Os linguistas que não nos peçam para abandonar a prática de intuir os significados das palavras. Mesmo que seja uma falsa ou pseudoetimologia, essa atividade tem uma aura lúdica, e brincar com as palavras é descobrir e criar histórias.

6 de julho de 2018 – Karim Siebeneicher Brito

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