INQUIETAS PALAVRAS

MAPAS NA MÃO E HISTÓRIAS NA BAGAGEM

Quando um homem vende mapas, pare para lhe ouvir

Forasteiro que conhece os mistérios da cidade, infante que sabe manejar armas e também palavras e poemas; sargento por profissão e mapeiro por devoção, Fernando Nogueira Araújo carrega 77 anos de histórias nos olhos alegremente vívidos e mistérios envelopados e endereçados dentro da sua mala. Um dos envelopes dirigido para Genebra, Suíça, contendo um livro para um amigo distante. Embora tenha residência fixa, o mapeiro divide-se entre União da Vitória e São Paulo e, nessa viagem, carrega os mapas dos lugares que andou, documentos organizados e sempre à mão, uma foto do neto tocando violino, uma foto da esposa, cartas de amigos distantes, notícias impressas destacadas com caneta vermelha e um verso de Castro Alves caprichosamente escrito à mão onde se lê: “Oh! Bendito o que semeia Livros… livros à mão cheia…E manda o povo pensar! O livro caindo n’alma É germe — que faz a palma, É chuva — que faz o mar”, além de muita serenidade no falar e agir.

Foi na esquina da Prudente com a Sete que avistei Fernando, com sua boina de couro sobre os cabelos brancos, sentado em frente à livraria local, segurando nada mais nada menos do que mapas: mapas-múndi, mapas do Brasil, mapas grandes e pequenos e mapas do corpo humano. De todas as coisas vendíveis nas esquinas do mundo, mapas têm, visivelmente, perdido espaço para os balões de gás hélio, cachorro-quente, bolão da mega-sena e, aparentemente, limpador de para-brisa. Portanto, ao se deparar com um vendedor de mapas, não se deve passar incólume, é sempre bom questionar o motivo de tão atípica escolha do mercador, já que a opção por bens mais consumíveis e de mais fácil transporte seria uma opção mais rentável. E movida por essas curiosidades, nessa esquina, que comprei meu primeiro mapa-múndi e julguei de bom tom perguntar ao vendedor como ele estava. Foi com um sorriso largo, perceptível mesmo por debaixo da máscara, nossa companheira diária, que ele me respondeu com olhos carinhosos: “não posso reclamar. Estou vacinado”, gargalhando e balançando no sol de março a carteirinha de vacinação carimbada. E foi assim que a quinta-feira ganhou muitas histórias e algumas viagens conduzidas pelas palavras do mapeiro, que aceitou ser entrevistado. Contudo, com a sabedoria de quem já andou muito e conhece o coração humano, anteviu e adivinhou algumas das minhas perguntas e assim que eu dizia uma ou duas palavras, ele emendava: você vai perguntar sobre tal coisa, não é mesmo? E ria solto.
A sabedoria dele vem de longe e de muitos lugares. Nordestino, Fernando nasceu em Caicó, no Rio Grande do Norte e conhece a etimologia das palavras e das coisas, explicando-me que Caicó significa peixe pequeno, enquanto caiaque, significa “por cima dos peixes”. Não é bonito?, me perguntou e concordei que a língua tem as suas delicadezas. Do Rio Grande do Norte, Fernando emigrou para São Paulo ainda criança, com o pai barbeiro e a mãe dona de casa. A trajetória começou cedo, mas foi no Exército que ele, então Sargento Araújo, começou a ter nos mapas seu principal instrumento de trabalho e apreciá-los como categoria de coisas imprescindíveis.
A sua maior satisfação veio dos tempos de atividade militar, quando era instrutor de campo, preparando manobras, fazendo marchas em cidades distantes e ensinando orientação por meio de mapas, bússolas e passos, sabe que cem metros correspondem a 83 de seus passos. Não esquece de quase nada, inclusive, contando os fatos com a data precisa de cada uma de suas mudanças, seja para o Amazonas, Acre, Pará, Paraná. Se no Exército viveu momentos de júbilo, também viveu momentos dolorosos. Com a precisão cronotópica, lembra que no dia 03 de março de 1973 foi recolhido à detenção militar por suspeita de envolvimento com as guerrilhas de Carlos Lamarca, capitão desertor do Exército e que assumiu papel importante na luta armada contra a ditadura. Foram 116 dias de detenção até o momento da comprovação da sua inocência e liberdade. Se esses dias lhe levaram vinte e seis quilos, deixaram na memória momentos agudos, que hoje doem menos que a satisfação de ter atravessado acampamentos e feito marchas extensas pelo Brasil afora. O esmero pela profissão era maior que os entraves e mesmo servindo o país em tempos sombrios não permitiu perder a doçura e o senso de dever, mas também de justiça. Foi em Julho de 1984 que Fernando se aposentou e entrou para o grupo de reservistas das Forças Armadas. Sem cansaço e com o desejo de continuar andando em frente decidiu ser mapeiro, como se autodenomina “achei que deveria vender mapa, espalhar conhecimento, me tornar mapeiro”, e desde então, há 36 anos segue andando e vendendo mapas.
Se o mundo cabe em um mapa, Fernando vai um pouco mais longe ao lembrar dos primeiros homens que pisaram na lua e me conta que um deles ficou conhecido por estas bandas como astronauta do Maratá – informação inédita para mim. Supostamente Charles Conrad teria nascido no Maratá e se mudado ainda criança para os Estados Unidos. Visitando notícias antigas, algumas indicadas pelo próprio entrevistado, vê-se que a história foi amplamente noticiada na imprensa, embora não confirmada. Fernando também contou que a pintora Djanira Mota viveu parte de sua vida nas terras das gêmeas do Iguaçu e me fez conhecer um pouco mais da sua obra.
O esmero com as palavras, a determinação e a vitalidade do Fernando confirmaram que quando um homem se põe a vender mapas é bom parar e ouvir, não é sempre que encontramos figuras singulares e tão cheias de vida e de histórias. Algumas delas estão aqui e outras tantas e pormenores ficarão guardadas em um lugar bonito que se chama memória. Fernando é o personagem desta semana e carrega os contrastes que tornam as coisas interessantes e nos mostra que é possível viver muitas vidas dentro de uma vida.

26 de março de 2021 – Lorena Izabel Lima

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