INQUIETAS PALAVRAS

O que o nosso vocabulário diz a nosso respeito

Ódio: é algo que por exemplo meu amigo tem pirulito e eu não. (Alexander Chalarca, 8 anos)
Branco:
é uma cor que não pinta. (Jonathan Ramírez, 11 anos)”

Já pensou em abrir o dicionário e encontrar essas simpáticas definições para os vocábulos? Apesar de divertido, seria muito improvável que isso acontecesse em um dicionário convencional. As definições acima foram retiradas do livro A casa das estrelas, de Javier Naranjo. Esse livro é digno de um abraço, tão delicado e rico. Nele são compiladas as definições que crianças deram a diversas palavras ao longo de dez anos de pesquisa do autor. Não é só “uma graça”, como uma pista preciosa de como os pequenos se apropriam de sentidos e subvertem significados. Não é, contudo, um dicionário e sim um livro de registros.
Um dicionário é construído por meio de pesquisas intensas e duradouras que podem atravessar décadas. Este tipo de obra é organizada por equipes de lexicógrafos, que, a partir de repertórios já existentes, fazem o minucioso trabalho de atualizar o conjunto de palavras catalogadas em uma língua, buscando inventariar o máximo de vocábulos possível, além de identificar os deslocamentos de sentido que eles sofrem ao longo do tempo. Algumas palavras caem em desuso, outras nascem e muitas ganham novos significados e novos usos, refletindo também as mudanças sociais. É o caso da palavra “patroa”, alvo de polêmicas recentes na internet, após uma celebridade musical procurar a palavra no dicionário do Google e se deparar com as definições de “mulher do patrão; dona de casa”. Após os holofotes das redes sociais se voltarem para o tema, o Google atualizou os significados da palavra para: “proprietária ou chefe de um estabelecimento […]”. Nada mais do que justo em um país em que temos 24 milhões de mulheres empreendedoras, segundo dados do SEBRAE, número que coloca o Brasil na sétima posição global no ranking de países em que as mulheres mais empreendem.
Ainda sobre essas polêmicas, a pauta do significado x dicionário também já foi alvo de questionamentos e até mesmo de processos judiciais. Em 2012 o dicionário Houaiss foi investigado pelo Ministério Público Federal de Minas Gerais após uma representação que alegava conteúdo preconceituoso e racista no dicionário relacionada ao vocábulo “cigano”, registrada na obra como sinônimo de “aquele que trapaceia; velhaco, burlador”. Obviamente a conotação destes termos é indiscutivelmente pejorativa. Contudo, responsabilizar o dicionário por esse registro já é outra história. Embora comungue da revolta no caso de “patroa” e de “cigano”, sejamos justos com os linguistas: o dicionário não inventa os significados, ele apenas registra e reúne os usos recorrentes feitos pelos falantes de uma língua.
A partir desse ponto, podemos retomar as definições feitas por crianças, citadas na abertura desse texto. As definições de Alexander e Jonathan não seriam registradas em um dicionário convencional porque tratam de sentidos individuais atribuídos às palavras e refletem experiências pessoais. Os linguistas Lakoff e Filmore explicam que existe uma interface do nosso conhecimento sobre as palavras: uma parte desse conhecimento é do tipo de definição e outra parte é enciclopédica, em que estão registrados conhecimentos culturais e coletivos, mas também experiências pessoais e cognitivas. Ao construir um dicionário, é a recorrência do significado atribuído pela coletividade que importa. Dito isso, não é difícil entender que um dicionário não é responsável pelos significados e tampouco pode ser tachado de machista/racista e outros istas. Ele apenas registra um comportamento social e, muitas vezes, expõem (mesmo que não seja esse o objetivo) o fato de que a sociedade está eivada de preconceitos e estereótipos – que, inevitavelmente, manifestam-se na língua.
Assim, o lexicógrafo assenta-se em uma tensão entre descrever os usos efetivos das palavras, perpetuando, assim, traços lexicais da discriminação, ou “interferir” linguisticamente, estabelecendo o que é, ou não, social e politicamente aceitável na sua sociedade e no seu tempo. Trata-se de uma questão que transborda a discussão apenas sobre dicionários e palavras, mas sobre a continuidade de certos preconceitos e comportamentos. Ocorre que higienizar a língua, tirando dela as marcas dos conflitos sociais, pode ter um sentido reverso, que é o de camuflar problemas enraizados na sociedade e simplesmente impedir que se manifestem por meio de interdições muito superficiais. Ainda assim, o debate e a possibilidade de questionar e pensar sobre a relação entre as palavras e a sociedade já é um passo importante para revermos as chagas linguísticas e históricas do nosso país e, talvez, não repassarmos expressões tão antiquadas para crianças como o Alexander e o Jonathan, do livro a Casa das Estrelas e para as crianças desta nossa conturbada época.

15 de dezembro de 2020 – Lorena Izabel Lima

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