INQUIETAS PALAVRAS

Quando o futebol é também poesia

Gol! Se a bola explode na rede, a palavra explode na boca do narrador e é capaz de alucinar multidões. Mais do que ver a bola entrando na bochecha da rede, a palavra que nomeia o ponto de um time inflama uma torcida. A palavra e o futebol andam juntos e a simbiose de ambos é capaz de transformar jogo em espetáculo.
Marca desse encontro da palavra e do futebol está na nossa longa tradição de narração de partidas pelas ondas do rádio, que emprestava olhos aos ouvintes e recriava o jogo pela voz do narrador. Somente na década de 70 ocorreu a primeira transmissão de jogos ao vivo pela TV, quando da Copa do México. Assim, galgamos a condição de telespectador e transgredimos o limite outorgado pelo narrador a partir da chegada da televisão. De lá para cá, cinco décadas se passaram deixando para traz os jogos em preto e branco até chegarmos à transmissão Full HD – e mesmo assim, é a voz do narrador que dá vida ao movimento.
Quando ouvimos um jogo de futebol estamos diante não apenas de uma narração, mas de uma narrativa: uma história se constituindo ao vivo e a cores, sem roteiro prévio e, por isso, imprevisível e passional. Futebol é narrativa e a humanidade é dependente de narrativas. Como jogo, na perspectiva da antropologia, tem sido considerado, da mesma forma que o ritual, como uma atividade de natureza eminentemente simbólica, pois é capaz de simbolizar a luta do homem contra si e contra os demais, a luta contra suas fraquezas e fracassos; a luta pela sua superação; a sua capacidade de enfrentar o inesperado. Nelson Rodrigues, que consagrou momentos do futebol por meio de suas crônicas, dizia que “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão.” Em suma: uma história. E não há histórias sem narrador.
E daí a beleza da linguagem do futebol. A narrativa que não se ensina nas escolas, mas que percorre as casas brasileiras é movida a metáforas potentes, jargões e termos que não apenas descrevem passivamente os lances, mas que lhes recobrem de vida. Dizer que a bola bateu no pé do bandeirinha é um ato sem vida, mas aí vem o narrador e diz que a bola caiu como uma meia no pé do bandeirinha. No último jogo do Internacional contra o Vasco, na briga pela taça do Brasileirão, Romulo Mendonça recheia de adjetivos e intensidades os lances: “O chute prensado do Denilson caiu pro Yuri e ele fuzilou com a chapa do pé”, ou “a bola no pezinho da trave”. Essas pequenas construções marcam também uma luta que se expressa em verbos como “desarmou o lateral”, “o chute como um canhão”, “faz lançamentos”, “dispara torpedos”, “ataca e se defende”. O próprio termo “artilheiro” coloca muito das metáforas futebolísticas no campo da guerrilha, que deslocam a narrativa assentada em uma referencialidade tácita para a construção emocional e subjetiva.
Haja coração! Carregado de poesia, na semifinal da Champions League 2018, no jogo do Ajax x Tottenham, em um momento de tensão aguda, o narrador descreve assim ao drible do jogador Lucas: “o pé não responde mais ao cérebro, mas ao coração”. Essa bela descrição simboliza a beleza do futebol, que só se completa com a capacidade de mensurar emoções e não apenas gestos.
Nos aproximando da final do Brasileirão e em tempos de pandemia e estádio vazio, o futebol só pode manter a sua magia e a sua beleza pelas palavras do narrador. O bom narrador é como um poeta que vê para além da imagem. Já alertou Nelson Rodrigues: “No futebol, o pior cego é o que só vê a bola”. É preciso aguçar os ouvidos, para ouvir a poesia dos campos.

23 de fevereiro de 2021 – Lorena Izabel Lima

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