INQUIETAS PALAVRAS

Um personagem permanente

Querido leitor, para lhe poupar o tempo, aviso que nada acontece nesta pequena história, que a bem verdade não é uma história, é quase uma foto de um dos personagens célebres do Vale do Iguaçu.
A tarde desliza pelas bordas do horizonte. O Rio Iguaçu está cheio, mas sem rebeldias, descendo limpo e calmo no seu curso secular. Olhando-o agora da margem não há sinais de que as suas águas já tenham sido tão violentas, arrancando, em volumosas enchentes, os telhados das casas que o ladeiam. Tudo agora é uma memória distante, adormecida em fotografias desbotadas em fotos de jornais que li muitos anos depois da sua publicação. Ainda assim, o presságio da fúria que pode se levantar dessas águas é uma promessa triste e constante.
Nessa tarde, contudo, um menino se equilibra na margem do rio e coloca um barquinho de papel na água. Acompanha com olhos curiosos a descida umedecida e cambaleante da sua nau. O menino guarda um desejo – penso – de que o barco chegue a outro menino rio abaixo, como uma mensagem codificada de que a infância resiste entre um barqueiro e outro. Há mais de cem anos, esse mesmo rio foi cortado por embarcações a vapor, que cingindo as águas traziam mantimentos. O Cruzeiro, embarcação de propriedade do Coronel Amazonas, teria dado ao lugar um ar de cidade portuária, crescendo na mesma velocidade do vapor fluvial, imagino.
Hoje, porém, rio acima, as águas formam espuma no rastro de um jet-ski, conduzido por um homem com colete salva-vidas e óculos escuros. Uma música se aproxima cada vez mais como se fosse empurrada pelo vento, abafando o barulho natural da água que se balança entre uma margem e outra. A música chega movida a motor de uma lancha, carregando algumas pessoas que não identifico, mas que sorriem e sorrio como resposta. Não consigo distinguir entre música e barulho, mas o som vai se afastando assim como veio.
Um homem vem subindo pela mesma margem do rio onde estamos sentados. Vem segurando uma prancha e um remo embaixo do braço – bronzeado demais para uma cidade de clima subtropical úmido, penso. Para em nossa frente seguido por dois cachorrinhos rafeiros, cujas línguas vibravam ofegantes. Elogia os livros, a cuia de chimarrão e a ausência de celulares no ambiente. Não comento com o ele, mas o celular está ali na minha bolsa – conectado eternamente. Disse que sobe o rio por muitos quilômetros margem acima, seguido por seus dois amigos caninos. Depois desce rio abaixo sobre as águas do Iguaçu que o levam vagarosamente para o ponto inicial. Vira as costas e continua subindo margem acima, pisando a grama e o mato.
Sinto que sento na beira de um rio que carrega um excesso de passados. Eu o reconheço e ele me reconhece. Agora barco nenhum cruza o horizonte. Na minha frente é o homem que passa flutuando sobre a prancha. Os pés muito fincados sobre a superfície da placa dão o equilíbrio necessário para que ele coloque o remo gentilmente contra a água. Em cada uma das pontas da prancha, um dos cachorrinhos vai pousado em pé como uma estátua do Central Park: um olhando o caminho que vem pela frente; o outro, olhando o caminho que vai ficando para trás. Penso em tirar uma foto, mas volto atrás. O rio na minha frente, cheio de passado, agora é só um presente. É o rio. O rio é o personagem mais antigo e mais vivo desta cidade.

26 de junho de 2021 – Lorena Izabel Lima

Clique para comentar
Sair da versão mobile