REMINISCÊNCIAS

A história, os contos…

Na década de mil novecentos e cinquenta, no século passado, portanto, em especial no mês de julho, dias frios de inverno, habitualmente íamos passar as férias escolares no interior. O destino era a casa dos avós, onde o desfrute das benesses era integral, inesquecíveis. A casa de madeira, bem situada em local plano e amplo, possuía varanda que praticamente a circundava e nela, em bancos de madeira, no final de tarde, assentávamos para “tomar chimarrão”, apreciar o entardecer, a visão de horizonte longínquo, ouvir histórias que mais pareciam contos elaborados por hábil narrador. O entardecer belo como só a acontecer nos meses de inverno, o sol se escondendo no horizonte por detrás da curvatura do planeta, aspergindo profusão de cores de diversos matizes, que colorem eventuais nuvens, brumas e tudo o mais, demonstra o bom gosto, a grandeza natural, o poder do Pai de Todos. Albergados na varanda da casa grande, mateando, assuntos diversos debatidos em conversa descompromissada, logo haveria a instigação ao avô para narrar histórias de vida, essa que fora diversificada, fértil em aventuras as mais diversas. O avô nascido em fins do século XIX desempenhara diversas funções naqueles idos: a partir dos doze anos de idade, assumiu as funções de tropeiro, auxiliando tropear gado dos campos de Palmas a Rio Negro onde era embarcado, exportado pela via férrea a Sorocaba e outras regiões. Posteriormente desempenhou as funções de marinheiro embarcado na Lancha Vitória de propriedade do pai e que trafegava nos rios Negro e Iguaçu, transportando madeiras, erva mate, principalmente. “Os homens e mulheres ao tempo, eram forjados de forma dura, difícil, só os mais fortes sobreviviam” – contava o avô numa das ocasiões. Continuando a narrativa de lembranças, dizia: “Estava com a noiva num baile no Clube Rionegrense, quando estourou desentendimento entre diversos e, quando se deu conta, estava envolvido na refrega”. Dizia: “Naqueles idos não era incomum trazer à cintura revólver e faca para diversas funções, estava no que dos 20 anos”. A refrega instalada era intensa e o avô, homem forte, vigoroso, adestrado em sem número de outras, atacado desmotivadamente, certamente resquícios do passado, sacou do revólver e com a outra mão a faca – contou. Desferindo golpes, deflagrando tiros, abriu caminho para fora do Clube, alcançando o pátio onde havia deixado o fiel companheiro Tordilho. Cavalo habituado a eventos violentos, quando montado obedecia a comandos apenas com os joelhos do cavaleiro o que permitia o empunhamento das armas. E aos estímulos do ginete, Tordilho rompendo barreiras, saltando eventuais obstáculos, obedecia inteligentemente ao comando. “Noite escura de lua nova – contava – era iluminada brevemente pelo espocar das armas diversas, agora também pelos fuzis da Polícia Militar do Paraná que não lhe era simpática como consequência de outros eventos”. “Ao tordilho o zumbido das balas deflagradas já lhe eram habituais dizia, quase faziam parte do cotidiano”. “Certo que a Polícia lhe estava à caça e a fuga para Mafra, Santa Catarina, seria a única solução momentânea.” Tordilho bem adestrado, como raio, disparou em direção à ponte que ainda hoje faz a ligação entre Rio Negro e Mafra – Paraná e Santa Catarina – ponte Dr. Diniz Assis Henning. “Assoalho de madeira o galope do Tordilho” – contava, “o som das patas troava ao longe, com força e vigor, e a guarita da Polícia Militar de Santa Catarina instalada no lado catarinense, ao final da ponte, foi aguçada e novo risco ocorreu: – certamente seria alvo da mira daquela”. “A madrugada já ia longe e os militares catarinenses que estavam recolhidos aos braços de Morfeu, felizmente demoraram a tomar ciência do que estava ocorrendo e, quando tomaram conhecimento o veloz Tordilho já havia ultrapassado os limites da Guarita e daí estrada de terra, noite escura, som do galope abafado, pelo do animal escuro, alvo dificultado – Tordilho Negro mais eu, desaparecemos na noite.” “A polícia paranaense não ultrapassava os limites estaduais; a catarinense estava despreparada no momento e somente iria se movimentar depois do amanhecer; frustrada a perseguição, porém não havia probabilidade de permanecer na região” – contava. “Esses fatos foram a esquina da vida”, afirmava. “Conhecia a região do porto de Poço Preto no rio Iguaçu que diversas vezes percorrera com a Lancha Rosa, tracionando balsas a reboque quase sempre carregadas, nas décadas de 1910/1920.” “O porto de Poço Preto era local de reabastecimento de lenhas para a caldeira da lancha Rosa.” Prevendo bons negócios, adquiri a área de terras locais, porquanto paralelamente ao rio Iguaçu fora instalada recentemente a via férrea que ligava Mafra a Porto União e o consumo de madeira para as fornalhas das lanchas e das locomotivas, era coisa certa”. “Aquisição efetuada, às margens da ferrovia, à beira de riacho para prover água potável, construí um rancho de pau-a-pique, chão de terra batida, coberto de sapé, no melhor dos estilos dos selvícolas regionais”. “Não houve muita demora para que a noiva que estava grávida chegasse, indo se acomodar no rancho. Os tempos eram difíceis, o primitivismo, a rudeza eram a tônica”. “O mês de maio de 1917, além de muito frio fora também muito chuvoso. Nem a fogueira feita ao centro do rancho era capaz de eliminar o frio que se esgueirava pelas frestas das paredes do rancho”. “E no dia 16/05/1917, quando então minha mulher teve início às dores do parto, no dorso do inesquecível, inestimável, Tordilho, a galope saí a procura de parteira possível, médico não existia ao tempo”. “No interior, próximo a Timbozinho, numa aldeia índia, encontrei uma velha índia, recomendada por muitos em face das habilidades como parturiente, sem outra alternativa foi levada para fazer o atendimento”. “De volta ao rancho agora mais a parteira que não era muito simpática, essa logo estabeleceu algumas regras, entre ela a mais surpreendente: deveria vestir o paletó do lado avesso e, circundando o rancho, declamando o Padre-Nosso em voz alta, deveria esperar o nascimento daquela que foi a primogênita”. Foram horas nessa situação, a mulher gemendo, ora gritando de dor; eu dando voltas no rancho, agora murmurando o Padre Nosso já não sabia o começo nem o fim…molhado, congelado, continuava o ritual aguardando o milagre do nascimento”. E esse ocorreu: madrugada de 17/05/17. O choro alto da filha foi o fim da angústia, o começo de muitas esperanças, muitas alegrias… O fim da tarde chegou, hora do recolhimento, outra história, outro conto, noutro dia..

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