BREVES HISTÓRIAS

A house is not a home

Funcionário público federal aposentado, Antônio estava com 69 anos e era o primogênito de quatro irmãos. Pedro, um pouco mais novo do que ele, estava com 67 anos e era um médico preocupado, exclusivamente, em ganhar dinheiro. Com 64 anos estava Maria Angélica, dona de casa casada com Bruno, um industrial rico e de poucos amigos. Finalmente vinha Teresa Cristina, com 54 anos e mãe solteira de Paola, de 17 anos.
Desde que se aposentara, Antônio que nunca havia casado e não tinha filhos, intensificara seu desejo de viajar. Há uns 10 anos, viajando para Lisboa, reencontrou de forma casual, Sílvia, uma antiga namorada que ele não via a mais ou menos 40 anos. Ainda muito jovem ele rompera com Sílvia, sem saber exatamente por que e isso o incomodava, principalmente, por que nunca mais conseguira manter um único relacionamento, medianamente, duradouro. Sílvia era uma advogada casada com Maurício que era médico. Ela era mãe de um casal de filhos e continuava bonita.
Em pouco mais de duas horas de conversa, em um jantar, no restaurante do hotel em que estavam hospedados, com Maurício e os filhos, recolhendo-se mais cedo, o mítico encanto foi desvanecendo. Antônio descobriu em Sílvia uma católica fervorosa, o que por si só já desagradava seu materialismo histórico, marxista que era. Mas para além disso, Sílvia era uma emérita conservadora e embora não submissa ao marido, deixava para ele as decisões mais importantes. Estava quebrada a magia e Antônio percebia que não existe o parceiro ideal, há apenas pessoas com quem compartilhamos um maior grau de afinidades.
Logo depois dessa viagem ele se aposentou e passou a viajar cada vez mais. Entre seus pouquíssimos amigos estavam sua irmã, Teresa Cristina, sua sobrinha Paola, e Júlia, madrasta de sua outra irmã.
Paola era uma garota calada, bastante introvertida e introspectiva, mas que se relacionava muito bem com ele, talvez porque não havia tido pai e nem ele filhos. Há uns três anos ela pedira para viajar com ele e sempre que possível ele a levava. Júlia finalizava seu tripé de amigas mais próximas, estava com 79 anos, era viúva, uma talentosa artista plástica e anarquista meio convicta, como ela própria dizia. Seu marido, Otaviano, havia morrido há sete anos e a conhecera em uma viagem de férias a Espanha. Ele era antropólogo e havia cumprido excelente carreira como professor universitário. Encontra-se com Júlia em uma galeria de arte em Sevilha onde ela estava expondo. Com afinidades aflorantes, logo resolveram viver juntos e o fizeram por mais de 30 anos, até a morte de Otaviano, que também mantinha uma ótima relação com Antônio.
Após desencartar-se com Sílvia, Antônio empreenderia uma busca pela cidade ideal, em uma espécie de Percival, um dos últimos Cavaleiros da Távola Redonda à procura do Santo Graal, ou mesmo de Aureliano Buendia em busca de sua mítica Macondo.
Nesta busca, sem nenhum critério específico, se incorporam Julia, entusiasmada com a ideia e Paola ainda mais empolgada com o périplo.
Antônio não compreende a exata motivação da busca, dizendo a Júlia e Paola, que ela, a busca, talvez preencha alguns de seus vazios existenciais. Enquanto Júlia, já desiludida da vida, enxerga aí uma nova motivação, Paola, por sua vez inspirada na leitura de Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez, livro indicado pelo tio e que lera recentemente, também vislumbra a possibilidade de encontrar sua Macondo, Shangrila, Atlântida ou outra cidade mitológica que a faça perceber quem de fato ela é.
Desse inusitado trio, composto por uma mulher já nos estertores da existência, de um homem sem muitas perspectivas e de uma garota no início da vida, mas cuja curta existência é permeada de dúvidas e angústias, algumas delas próprias da adolescência, outras originadas, provavelmente, pelo convívio com personagens tão ambíguos como Antônio e Júlia, nasce uma forte cumplicidade.
Antônio que já conhecia vários países europeus e das américas, já a algum tempo decide desvendar o Brasil e é em uma pequena cidade do litoral do Maranhão que ele se depara com um lugar que a princípio não lhe desperta nenhum interesse.
Ao caminharem a esmo pelas estreitas ruas da pequena cidade se deparam com uma jovem artista de rua expondo diversos de seus trabalhos, enquanto em um cavalete armado pinta uma paisagem urbana.
Antônio, Júlia e Paola apreciam muito o trabalho da jovem artista e param em frente ao quadro que ela está pintando. A medida que o quadro vai ganhando contornos definitivos, Antônio vai da admiração ao espanto, pois a paisagem é composta de uma rua com suas velhas casas que parecem congeladas em um longínquo tempo e que o remetem a uma velha rua de sua interiorana cidade natal.
Júlia percebe que Antônio passa da contemplação a um estado de incômodo e pergunta o que está acontecendo.
Antônio conta então que aquela paisagem é exatamente igual a uma rua de sua infância, com as mesmas casas e pintadas como aquelas que voltam instantaneamente a povoar sua memória.
Ele espera a garota terminar o quadro, apresenta-se e diz que conhece aquela rua e pergunta a Miranda, esse era o nome da menina, se ela havia tirado aquela paisagem de alguma fotografia ou mesmo se tinha familiares no sul do Brasil. Miranda responde que nunca saíra de sua cidade e que ao ver Antônio se aproximando teve uma espécie de epifania e começou a pintar.
Antônio então que havia crescido nas proximidades daquela rua, que lhe trazem belas lembranças de um tempo que já vai longe, diz que quer comprar o quadro.
Miranda responde que não pode vendê-lo. Antônio, atônito a indaga do porque não?
Miranda diz que é porque vai lhe dar o quadro, porque sem ele a pintura não existiria.
Antônio, Júlia e Paola decidem ficar mais uns dias naquela agora estranha cidade e vão, diariamente, até a rua onde Miranda está pintando e cada vez que ela o vê aproximar-se começa a pintar outros lugares que pertencem ao passado dele.
Quando já tem uns 10 quadros de Miranda, embora ficando cada vez mais perplexo, decide voltar para São Paulo.
Já de malas arrumadas vai se despedir. Ao chegar perto do local onde ela pintava, não avista ninguém. Fica preocupado e a procura por todas as ruas circunvizinhas, sem, no entanto, encontrar sinal dela. Volta ao local de origem e percebe que embora não tenha chovido nos últimos dias, não há um único pingo de tinta no chão.
O trio se entreolha muito intrigado, até que Paola toma a iniciativa e bate palmas no portão da casa em frente onde Miranda pintava.
Uma senhora muito velha vem atender e depois de responder a inúmeras perguntas deles, insiste em dizer que mora ali desde que nasceu e que nunca houve ninguém pintando ali em frente.
Não satisfeitos perguntam para moradores de mais algumas casas e recebem a mesma resposta, nunca existiu ninguém pintando em todas aquelas imediações.
Precisam voltar para São Luís porque seu voo para São Paulo sai dali a poucas horas.
Ao chegarem na pequena pousada para retirar as malas e fechar a conta, o senhor da recepção diz a Antônio que há uma carta para ele. Antônio vai percebendo que aquilo é muito estranho, uma vez que não conhece ninguém na cidade. Ninguém exceto, Teresa Cristina, sabe que eles estão ali. Entre perplexidade e estranhamento, Antônio abre a carta, que nada mais é que um curto bilhete, em que está escrito com uma bonita letra: Na maioria das vezes aquilo que buscamos, está em nós mesmos, ou muito perto de nós. Para perceber é preciso se desfazer das lentes que embotam nosso olhar e nos olharmos detidamente no espelho. Com carinho. Miranda.
Antônio mostra o bilhete para suas acompanhantes e é imediatamente interpelado por Júlia que pergunta:

  • Será que toda aquela gente mentiu para nós?
    Antônio então pergunta ao recepcionista quem entregou aquela carta e houve ele dizer que não se afastara dali um único instante e que aquela carta havia aparecido ali e que ele tinha absoluta certeza de que nas primeiras horas daquela manhã, a carta não estava ali e que mais ninguém passara pela recepção, pois eles eram os únicos hóspedes da pousada.
    Eles voltam para São Paulo e Antônio decide voltar para sua velha cidade, para a casa de seus pais que ainda está lá e para aquelas velhas ruas onde ele havia crescido e construído sua identidade e dela havia se perdido, até que Miranda lhe mostrasse o caminho de volta.

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