PROJEÇÕES DA HISTÓRIA
Felicidade

Felicidade. Por mais que procure, dificilmente o amigo leitor encontrará algo que seja tão ansiosamente buscado e desejado nos dias que correm. Todos querem ser felizes. Todos se perguntam, o tempo todo, se já são felizes e, não sendo, o que devem fazer para se tornarem. Entretanto, poucos são aqueles que conseguem definir o que seja, afinal de contas, a felicidade.
O tema é profundo e contraditório. Logo de saída, convém esclarecer que essa é uma busca bastante recente no mundo ocidental. Durante a Idade Média, ninguém se perguntava se era feliz. O que importava era seguir os planos que Deus havia traçado para nossa vida, os quais eram repetidos à exaustão pelos membros da Igreja, e esperar pela recompensa merecida no além-túmulo. Simples assim. Do mesmo modo, ao longo da Idade Moderna as pessoas mais bem aquinhoadas pela sorte perseguiam riqueza, poder, glória, mas tampouco queriam saber dessa tal felicidade. Aliás, para encerrar de vez a questão: pergunte aos seus avós se eles se preocupavam em ser felizes. Sei a resposta de minha avó, de 97 anos de idade: não. Que não me entendam mal os que me seguem, nessas linhas, até aqui. É claro que não estou dizendo que todos os seres humanos que viveram antes de nós gostavam de sofrer. Estou afirmando, isso sim, que a pergunta, para ser bem direto, não existia. As pessoas nasciam, brincavam na infância (bem pouco, é verdade, pois logo deveriam trabalhar para complementar os recursos materiais domésticos), se apaixonavam, se casavam, tinham e criavam filhos, envelheciam e morriam. E… era isso. Não havia, ao menos de modo disseminado, preocupações com o sentido da vida, com o objetivo da existência ou com a busca da felicidade. A vida era constituída de roteiros muito bem constituídos e apresentados desde cedo. As obrigações para com a comunidade eram duras e não admitiam contestação. Não existia a possibilidade de fazer vida longe do lar paterno: as pessoas, geralmente, nasciam, viviam e morriam no mesmo lugar, em geral ganhando a vida do mesmo modo que seus pais e avós. Que mundo estranho de se imaginar para alguém da idade dos estudantes com os quais convivo diariamente! Para eles a felicidade é a lei. Sem ela, nada faz sentido. Contra ela, a vida se torna insuportável. “Sou feliz?” é o questionamento que se fazem, praticamente, todos os dias de sua existência. E, na impossibilidade de encontrar resposta satisfatória a essa questão, muitos enveredam para os processos de ansiedade e depressão que tanto caracterizam essa primeira metade de século XXI.
A preocupação generalizada com a busca pela felicidade é, de fato, bem recente. Mas reflexões sobre o tema começaram a ser formuladas já nos primórdios da filosofia. Aristóteles, por exemplo, entendia que feliz era todo aquele capaz de identificar e ocupar, no cosmos, o lugar e a função que lhe seriam perfeitamente correspondentes. De acordo com essa concepção, a realidade seria moldada tal qual uma máquina perfeita e infinitamente complexa, formada por cada ser vivo que representaria, assim, uma peça única e insubstituível. Nesse sentido, felicidade seria o sentimento de todo aquele que lograsse colaborar com o todo do modo mais competente possível, exercendo uma atividade e ocupando um lugar destinado apenas a ele – e a mais ninguém. Identificar tal colocação é que seria a grande questão; para alcançar tal objetivo, Aristóteles recomendava o princípio tão disseminado por Sócrates, mestre de seu mestre, Platão: conhece-te a ti mesmo.
Felicidade diferente foi a apresentada por um andarilho pobre da Galiléia, em princípios do século I da era cristã: Ieshua, também conhecido como Jesus. De acordo com os relatos de seus ensinamentos que chegaram até nós, para ele feliz seria todo aquele capaz de oferecer ao próximo aquilo que gostaria que fosse ofertado a si mesmo. Entendido de outro modo, a felicidade original cristã parte de um princípio egoísta para atender a um ideal que é fraterno. Identificando em mim tudo aquilo que eu gostaria de receber, ofereço o mesmo ao outro. Parto de mim para chegar ao outro. Construção sumamente complexa e elegante! O “amar ao próximo como a ti mesmo” encerra o reconhecimento de que, seres extremamente egoístas que somos, apenas poderemos alcançar a felicidade se a estendermos ao vizinho, até mesmo ao inimigo, se necessário for. Se voltamos a nós mesmos, esquecendo todo o resto, nos tornamos progressivamente amargos, pela cobrança constante dirigida contra nós mesmos. Voltando-nos ao vizinho resolvemos definitivamente a questão, oferecendo a ele toda a felicidade que desejamos, mas que a consciência impede que satisfaçamos. Assim, feliz é todo aquele que enxerga, no próximo, a si mesmo, tornando bom um sentimento que é, na origem, mau. E ainda há quem veja a teoria cristã como algo simplório, de menor importância intelectual…
Na Alemanha do século XIX surgiu outro conceito de felicidade, não menos belo e complexo. Nietzche apresenta, através da ideia do “eterno retorno”, a proposta de que feliz é todo aquele que encontra, em algum ponto de sua existência, um momento que ele deseja que nunca acabe. Ali esse ser seria completo. Ali ele estaria no lugar certo, na hora certa, fazendo o que é certo. Ali ele seria, em uma palavra, feliz! Felizes somos todos nós, quando percebemos, espantados, que, em um belo dia, o tempo passou rápido demais. “Mas já?” perguntamos, incrédulos. Aí está, diria Nietzche: a felicidade seria anunciada por esse simples e espantado questionamento. Cuidado, contudo! Pois essa exclamação apenas é feita quando o tempo já passou, quando o momento já se extinguiu e, com ela, a felicidade que agora, graças ao filósofo, somos capazes de identificar. Bela formulação, é necessário dizer. Mas um tanto triste, temos de convir.
Formulações belas, todas. Três dentre tantas outras existentes. Mas não é nenhuma dessas a felicidade atrás da qual corremos todos, nos dias atuais. É atrás de uma muito mais simples, escorregadia e incompleta: a felicidade do marketing. Segundo essa definição típica da sociedade de mercado pós-industrial, feliz é todo aquele capaz de satisfazer todos os seus desejos, não importando quais sejam. Ao desejo sobrevém o seu pronto atendimento: eis a fórmula da felicidade líquida, na definição de Zygmunt Bauman. O problema é que, como Platão bem ensinou há milhares de anos, o desejo é algo um tanto complicado, pois ele só existe na ausência do objeto desejado. Não tenho, portanto, desejo. Tendo, deixo de desejar; prontamente esse sentimento se volta a outra coisa. Configura-se, assim, um paradoxo impossível de resolver. Somos felizes quando satisfazemos nossos desejos mas, fazendo-o, matamos essa mesma felicidade no momento seguinte, projetando-a na satisfação de algum novo desejo, que prontamente assoma. O que provoca ansiedades, medos, depressão; mas que garante a renovação infinita do consumo, objetivo último das peças de propaganda que nos impelem constantemente a uma nova compra, criando desejos que, na origem, não existiam. Nossa mente adoece, mas a economia prospera. Esse ideal específico de felicidade, universalmente disseminado e geralmente aceito sem a menor crítica, se tornam as grades que aprisionam nossa vontade. Alcançamos, sem nos darmos conta, o exato oposto do que buscamos. Longe de Aristóteles, de Jesus, de Nietzche, a felicidade do consumo nos leva aos medicamentos, prontamente disponibilizados pela indústria que mais lucra no mundo. O fenômeno já foi bastante estudado e é, hoje, bem conhecido. Convém que sejamos felizes, mas sem abrir mão de sermos livres. Afinal de contas, qual liberdade pode ser maior do que aquela que nos permite determinar os termos segundo os quais definiremos os destinos e o sentido de nossa própria vida?
Até a próxima!