PROJEÇÕES DA HISTÓRIA

Sobre a inferência de sentimentos no dinheiro

O dinheiro não tem sentimentos. Ele não flui para as mãos de pais de família empobrecidos que, desesperados, clamam por algum milagre para alimentar os filhos. Tampouco financia obras de caridade ou construção de hospitais públicos, seguindo a algum tipo de inclinação solidária que o faria atender aos valores cristãos que pregam o auxílio aos mais necessitados. Do mesmo modo, não financia a produção de alimentos para os países mais pobres, não colabora voluntariamente para o fim das guerras, não escorre alegremente para as contas bancárias de dedicados pesquisadores interessados na descoberta da cura do câncer. Nada disso! O dinheiro persegue apenas um objetivo: sua própria multiplicação. Possui um faro aguçado para oportunidades de crescimento localizadas nos mais distantes rincões do planeta, aceita dócil o chamado dos multimilionários que compartilham com ele, vil metal, do mesmo objetivo. De fato, a observação dos fatos parece indicar o curioso fato de que o dinheiro parece mesmo evitar os que dele necessitam, buscando do modo mais eficiente possível a companhia daqueles a quem menos impacta, porque dele já estão mais que fartos. A concentração de riqueza na mão de uma ínfima minoria da humanidade parece o resultado mais óbvio desse processo que, julgado sob o prisma da ética e da moral parece simplesmente monstruoso. Mas o caso é que, desprovido de sentimentos, o dinheiro também o é de ética e moral. Para ele, valores devem ser sempre antecedidos de cifrões, símbolos estranhos, nacionalizados, que dizem pouco a multidões, mas que representam a razão de existência da minoria à qual me referi acima. Essas afirmações são duras, sem dúvidas. Mas compõem parte do senso comum de economistas, financistas e banqueiros. Experimente contestar com eles qualquer das ideias expostas, e receberá um educado sorriso em retorno. Seria quase como contestar a esfericidade da Terra: alguém minimamente instruído realmente consegue defender a ideia de que o planeta é plano? A resposta é óbvia. Tão óbvia quanto são as regras que determinam o fluxo monetário entre as sociedades e entre os indivíduos que as compõem.

Se essas afirmações elementares fossem lembradas com mais frequência, tragédias historicamente repetidas e reiteradas como os conflitos do Contestado (1912-1916) seriam mais facilmente compreendidos. E outras tantas injustiças dos dias atuais seriam mais amplamente noticiadas, analisadas, criticadas e devidamente corrigidas. E uma infinidade de ideias simplesmente ilógicas deixariam de ser arvoradas como se fossem grandes planos para a salvação do país. Senão, vejamos: Percival Farquhar, o grande magnata por trás do maior conglomerado de empresas do Brasil no início do século XX não era, necessariamente, um vilão sanguinário. Suas empresas provocaram um verdadeiro genocídio. A Lumber simplesmente acabou com a floresta de araucárias da região sul, enquanto seus funcionários armados matavam os caboclos que proposital ou inadvertidamente entravam em suas terras. A Brazil Railway expulsou centenas de famílias das terras nas quais viviam por gerações, e legou à mais profunda miséria outras tantas centenas de trabalhadores dispensados após a conclusão dos diversos trechos da linha de ferro, não sem antes explorá-los das mais diversas formas nas linhas de trabalho. Tudo isso é verdade e, francamente, repulsivo. Mas são fatos e processos que apenas seguiram a lógica de um capital que, repito mais uma vez, não tem sentimento, ética ou moral. Ou o amigo leitor considera seriamente que Farquhar abandonaria sua terra natal, sua família e amigos para se estabelecer em um empobrecido país do hemisfério sul atendendo a uma paixão irresistível pelas terras brasileiras? Ou por seu povo? Alguém realmente considera que um dos homens mais ricos do mundo, em seu tempo, estava imbuído de valores cristãos ou patrióticos quando aqui se estabeleceu? Seu objetivo era apenas e tão somente multiplicar dinheiro, nada mais. Ou alguém considera seriamente a possibilidade de este capitalista investir milhares de dólares na construção da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande por alguma outra motivação? Poder, talvez. Mas mesmo poder só é atrativo para os poderosos porque traz consigo, obviamente, dinheiro.
O investimento foi feito. A linha foi – mal – construída. Cheia de curvas desnecessárias, traçados duvidosos, elaborados com a única finalidade de aumentar o poder de multiplicação monetária através dos vultosos pagamentos da garantia de juros estabelecida no contrato assinado com o governo federal. Prática imoral e repugnante, sem dúvida. Mas coerente com o contrato assinado que, por sua vez, atendia às leis brasileiras da época. Portanto, legal – muitas vezes o que é legal não é, necessariamente, moralmente correto. E, uma vez cumprida a parte que cabia a Farquhar, chegou a hora de o investidor receber a contrapartida prevista. Sem qualquer atenção, claro está, a quaisquer considerações de ordem moral, religiosa ou sentimental. Eis o estopim que conflagrou toda uma região já bastante sensibilizada por uma história tumultuada por indefinições territoriais e disputas de fronteiras. Eis a racionalidade óbvia e claramente exposta tantas vezes esquecida nos dias atuais, também em nossas cidades.
Há poucos dias fui surpreendido por mais uma dentre tantas afirmações e defesas absurdas que se tornaram, infelizmente, tão comuns. A prestação de serviços públicos deveria deixar de existir, sendo confiada apenas ao discernimento e interesse de companhias privadas e seus investidores. SUS? Um buraco sem fundo que serve apenas para retirar dinheiro da nação. Correios? Um absurdo terrível que se mantém à custa de recursos oriundos de impostos enquanto oferece apenas serviços ruins e caros. Escola pública? Um contrassenso inominável, verdadeira afronta aos mais elementares princípios da meritocracia. E por aí vai. Ouvi a tudo tal qual um personagem dos quadros de Da Vinci, mas com menor sensibilidade. Ao final da diatribe, me despedi polidamente e saí, refletindo sobre o que acabara de ouvir. Entre atender a um paciente em estado grave porém pobre, e obter lucro avultado com a realização de uma intervenção meramente plástica, qual opção o referido vizinho considera que seria escolhida por um sistema de saúde gerido de acordo com os interesses do dinheiro? Entrega de encomendas: Será que o ilustre cidadão considera por algum segundo que alguma empresa multinacional se interessaria em recolher migalhas distribuindo encomendas por uma cidade do tamanho de Porto União da Vitória enquanto poderia multiplicar muito mais dinheiro atendendo apenas a aglomerações urbanas maiores e mais ricas? Educação: porque oferecê-la com qualidade e boa remuneração a docentes capacitados se é possível lucrar mais fazendo exatamente o oposto?
É francamente assustador a facilidade com que os seres humanos se esquecem de verdades básicas, quase triviais, na consideração das injunções que regem suas próprias vidas. O dinheiro não tem sentimentos, repito mais uma vez em um esforço quase desesperado parafazer com que a ideia se fixe. Não é patriota, não é cristão, não é justo. Nada disso. Apenas é… dinheiro. E se multiplica enquanto tal. Quanto mais o considerarmos como o que realmente é, mais teremos oportunidade de fazê-lo trabalhar a nosso favor, ao invés de incentivar o exato oposto. Será essa uma possibilidade minimamente factível? Não respondo, pois assim deixo ao leitor a chance de considerar a questão de um ponto de vista otimista. Até a próxima!

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