LITERATURA

Vinícius de Moraes e o amor pela arte

Tenho aqui em minhas mãos a reprodução de um retrato de Vinícius de Moraes realizado por Cândido Portinari. Inspira-me este texto.
Reza a lenda que Vinícius, quando saía de um casamento para entrar em outro, só fazia de exigir um bem na partilha, que ele ficasse com o quadro em que fora retratado pelo amigo, a quem chamava carinhosamente de Candinho. Independente das decisões que envolviam a divisão de bens, lá saía o escritor de fininho com a pintura embaixo do braço. Na obra, produzida em 1938, o poeta aparece jovem, com seus 25 anos, prestes a partir para a Inglaterra, numa temporada de estudos em Oxford. José Castello, na biografia “O Poeta da Paixão”, observa que o retrato apresenta o poeta com “olhos imensos e caídos, discretamente enevoados, um topetinho derrubado sobre a testa e um ar sério e triste que lhe confere um mistério especial”. Lembra ainda que Vinícius se sentiu privilegiado por merecer do artista tal dose de liberdade de estilo, já que aquele era um dos mais livres e menos convencionais retratos que Portinari pintara até então. O poeta teria dito algumas vezes que o quadro era a sua Mona Lisa e Portinari o seu Leonardo.
Quando a sua filha Suzana casou com o diplomata Rodolfo Souza Dantas, em 1959, o pai a presenteou com o famigerado quadro. Logo depois, quando ele estava casado com Lucinha Proença, uma de suas variadas musas, pediu que a filha o devolvesse, com a justificativa de que gostaria que a pintura ficasse ao lado de um retrato da esposa, também realizado por Portinari. Talvez a história fosse apenas uma desculpa para o escritor recuperar o objeto sem precisar dizer o quanto gostava dele. Em uma de suas crônicas, “Retrato de Portinari”, reunida na antologia “Para viver um grande amor”, Vinícius confessou: “Cheguei mesmo à baixeza – sabendo que ela andava precisada de um dinheirinho para as miudezas do seu casamento – de propor-lhe comprar o quadro; mas a proposta a indignou sobremaneira, coisa que, no fundo, satisfez também meu orgulho de pai quanto ao seu bom caráter. Sugeri-lhe que ela o deixasse em consignação, durante o que ainda me restar de vida”. Suzana não resistiu e devolveu.
Depois da morte de Vinícius, o quadro voltou para Suzana. Era uma vontade dele, registrada em um testamento escrito em 1971, em Salvador, e dirigido a Gessy Gesse, para ser aberto em caso de morte ou desaparecimento (o Brasil vivia anos obscuros com a ditadura militar): “Meu retrato de Portinari, eu gostaria que você desse a Suzana. É dela”. Antes de Vinícius partir para outras esferas, separou-se da baiana Gessy, uma de suas últimas paixões. Segundo Castello, o escritor que sempre se separou das mulheres deixando tudo para trás, teve enormes dificuldades na hora de abandonar Gessy Gesse: “Depois de iniciar a contragosto uma batalha judicial, conseguirá recuperar seu retrato assinado por Cândido Portinari e se dará por satisfeito”.
Penso que o amor de Vinícius por este quadro sintetiza seu encanto pela vida. Certa vez, Clarice Lispector ao entrevistar o poeta, observou que o que ele de fato amava era o amor, e nisso incluía as mulheres, e acrescento aqui, a arte. O amor e o respeito pela arte, que no fundo é uma reverência incondicional pela vida, diz muito sobre o que somos e sobre aquilo que amamos. Aliás, se ensinássemos as crianças a apreciar mais a arte, a estudá-la com carinho e afinco, extraindo do aprendizado uma boa dose de prazer e conhecimentos variados – tanto quanto inusitados -, certamente essas crianças seriam além de adultos mais felizes, cidadãos um pouco mais educados com a vida, com os outros e com a própria arte. Carregar um quadro pela vida afora como quem guarda um tesouro é bem diferente de esfaqueá-lo sem ao menos saber o que se fere.

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