CONTEMPLANDO

Robôs que falam, mas não do jeito que você pensa

Quebrei a cabeça nos últimos dias pensando sobre como eu gostaria de iniciar minha coluna. Como faço costumeiramente no meu blogue pessoal (), aqui também tratarei de linguística, gramática e suas relações com outras áreas, como a literatura e outras artes. Há vários temas que eu gostaria de discutir, como o gênero neutro e o politicamente correto, mas vou iniciar com um tema que não gera tanta discussão e que toca num aspecto que me interessa muito como linguista e escritor, a relação entre linguagem e tecnologia.
Essa semana li uma matéria no site Tilt, do portal UOL, sobre o avanço da Inteligência Artificial (IA) sobre áreas criativas, como o design gráfico, a edição de vídeos e a escrita (Se IAs conseguem até desenhar e escrever, qual é o futuro dos artistas? 10 jan 2023). Robôs falantes não nos assustam mais, pois já convivemos com Siris, Alexas e Google Assistentes em nossos celulares e dispositivos eletrônicos. Essa é a imagem típica que temos deles. Mas o desempenho de aplicativos como o do ChatGPT, que assombrou a internet semana retrasada, ainda causa alvoroço. Spike Jonze, no tocante filme Her (2013), imaginou um futuro em que um humano se apaixona por uma criatura feita de áudio, só que com a voz envolvente da Scarlet Johansson. Somos seres de linguagem, não é inverossímil que alguém se apaixone por uma voz. Com o progresso das pesquisas, essas inteligências robóticas cada vez nos soam menos artificiais.
Nossos celulares, computadores e páginas da internet estão povoados de robozinhos falantes: aquele chat que abre em algumas páginas de empresas de serviços é um robô; o tradutor automático do Google, idem; o Duolingo e o Babbel, aplicativos para aprendizagem de línguas estrangeiras, também não deixam de ser pequenos robôs.
Não para por aí. Se há aplicativos capazes de corrigir ortografia, completar frases e traduzir automaticamente textos, há também programas capazes de resumir textos. Há alguns anos, num congresso, vi uma apresentação que tratava do tema e fiquei abismado. Um robô que faz resumos! Se o leitor ou leitora duvida, já há até um aplicativo de uso gratuito online, o Resoomer. Embora se fale pouco desse nicho de emprego, há muitos linguistas colaborando no desenvolvimento de programas e aplicativos. Sim, empresas de desenvolvimento de tecnologia precisam de profissionais formados em Letras.
Pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (SP) desenvolveram um aplicativo que corrige redações do ENEM, o CIRA. Além de apontar problemas gramaticais em geral (ortografia, pontuação, concordância etc.) também identifica alguns problemas semânticos (redundâncias, frases feitas, uso inadequado de conectivos etc.). Embora seja incapaz de fazer uma avaliação global do conteúdo e da qualidade do texto, sua capacidade por si só já é assombrosa. Quem usa o Word para escrever cotidianamente sabe das suas falhas em identificar problemas de sintaxe (onde não há, encontra problema; e onde há, não vê), embora a correção ortográfica seja bem útil.
Um parêntese: as pessoas deveriam usar mais tais corretores; ainda me assusta que se cometam erros dessa espécie numa era em que computadores fazem a revisão para nós.
Ainda mais assombroso são os aplicativos de escrita, citados na matéria do Tilt, como o Rytr e o Novel AI. O Ryter te oferece opções em várias línguas para escrita de diversos gêneros textuais: e-mail, post de blogue, anúncios, descrições de produtos, enredos curtos e por aí afora. Convido o leitor a fazer um teste.
Não é difícil imaginar um futuro não muito distante em que nossos alunos estarão usando esse tipo de ferramenta para escreverem seus trabalhos escolares e universitários. Talvez jornalistas e publicitários adicionem esses aplicativos às suas caixas de ferramentas.
Para citar um exemplo famoso, a Netflix usou IA para criar a série Stranger Things, analisando os dados de filmes e séries que seus assinantes mais gostavam: os filmes de aventura e ficção científica dos anos oitenta. Não é à toa que a série tem essa carona de filme da Sessão da Tarde e que fez sucesso entre os millenials. Garotos correndo de bicicleta pra cima e pra baixo numa cidade pacata, conspirações militares e uma boa dose de fantasia. O Demorgogon e o Vecna, por exemplo, são personagens do clássico jogo de RPG Dungeons & Dragons, febre nos Estados Unidos naquela época. Tudo na série foi escolhido para a gente ficar vidrado.
Mas e se histórias inteiras fossem escritas usando essas ferramentas? Personagens, trama, diálogos… tudo criado por algoritmos. Qual o valor artístico dessas histórias? Nas artes visuais esse debate já está aberto, desde que uma pintura finalizada com uso de IA ganhou um prêmio.
Embora muito da poesia experimental contemporânea pareça um punhado de palavras jogadas sobre a página numa disposição aleatória sem sentido, podemos imaginar o momento em que um dos laureados com o Prêmio Jabuti de 2050 agradeça ao seu aplicativo de escrita pela inspiração, numa espécie de dadaísmo cibernético.
Tememos que as máquinas tomem o nosso lugar – a ficção científica está repleta de histórias sobre robôs e aplicativos vilões. O problema real é que muitas dessas ferramentas tecnológicas estão tomando o lugar de pessoas. Esse medo é comum e natural. Imagino o pânico dos cocheiros no início do século XX quando os carros começaram a tomar conta das ruas; ou dos tipógrafos nos anos noventa quando os tipos móveis medievais foram substituídos pela impressão offset.
Infelizmente isso é verdade. Robôs, aplicativos e a IA tomarão o emprego de muita gente. Mas ao mesmo tempo se criam novas frentes de trabalho. Profissionais de Letras, como os tradutores, podem colaborar com programadores no desenvolvimento de melhores tradutores automáticos, por exemplo; revisores e editores também podem dar seus pitacos em programas que resumem e avaliam textos.
Nada supera o olhar humano sobre a palavra e na criação artística em geral, óbvio. Por isso não temo a invasão das máquinas nesse terreno. Nenhum robô escreverá como Clarice Lispector ou Machado de Assis, pois essa visada que os bons escritores lançam sobre o humano, suas relações, seus sonhos e desejos, (e sobre a própria linguagem!) não pode ser ensinada nem a outros humanos, quem dirá a uma máquina.
Luisandro Mendes de Souza

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