Correndo o risco de o leitor não dar muita bola pra esse texto por já estar cansado de ouvir falar sobre esse assunto, vou tocar num tema que parece interessar muita gente. Não vou me demorar na explicação do que é o tal do gênero neutro ou da linguagem neutra. O leitor facilmente encontra textos por aí esmiuçando a gramática da construção.
A motivação para a criação de um sistema gramatical neutro no português advém de um grupo de pessoas não se sentir incluído ou representado pelos gêneros masculino e feminino. Aprendemos nas boas gramáticas que não devemos confundir gênero gramatical com gênero biossocial, ou sexo. Se a gramática desenvolveu historicamente apenas dois, hoje vemos que a realidade é mais complexa que isso. Nossa ingenuidade acredita que uma “menina” ao começar a se vestir como “homem” mudou de gênero. Agora, “ela” é “ele”. Mas, além disso, embora possa parecer inusitado, há pessoas que não se identificam nem como homem nem como mulher, e preferem ser chamadas por “elu”, ou “ile”.
Quando digo algo como “a gramática desenvolveu” estou falando como se a gramática seja um ser com vida própria, com volição e crenças. Não é bem assim. Quem faz a língua, cotidiana e paulatinamente, são seus falantes. No livro resenhado em minha última coluna, Caetano Galindo nos conta um pouco dessa história da evolução do latim ao português dos nossos dias, mostrando como os fatos históricos contribuíram para que tivéssemos o português que temos hoje. O que quero dizer é que, embora as línguas humanas sejam sistemas com certa independência dos seus falantes (não tenho muita liberdade para reinventar a gramática da minha língua), ainda assim vemos que historicamente isso é possível. Para exemplificar, é sabido que o latim era uma língua em que os substantivos apresentavam três gêneros (masculino, feminino e neutro), como o inglês antigo. Mas o português contemporâneo apresenta apenas dois (masculino e feminino) e o inglês contemporâneo não tem qualquer marca gramatical de gênero. Ou seja, os falantes mudam sim as línguas. Mas isso não se faz por decreto, nem da noite pro dia, nem depende de um concílio de sábios, muito menos depende da proibição de um vereador conservador duma cidade insignificante do interior. (Mesmo que fiquemos com a impressão que as regras gramaticais tenham sido criadas ao bel-prazer de alguém). A mudança linguística é como a força das ondas na praia, é difícil segurá-la. A questão é se a linguagem neutra é uma mudança desse tipo. Já aviso que não.
Não, porque o contingente da população que ela inclui é muito pequeno. Muito mesmo. Por mais que você já tenha escutado por aí que agora está todo mundo saindo do armário, na verdade, 9% da população brasileira se identifica como LGBTQIA+, segundo o IBGE. E muitos deles não veem problema em serem chamados por ‘ele’ ou ‘ela’. Logo, o ‘elu’, ‘todes’ etc. é usado para incluir um conjunto de indivíduos dentro desses 10%. Para de fato ser implementado no nosso sistema gramatical, depende da adesão dos falantes, pois é uma mudança de cima pra baixo, o que é um empecilho, dado que as mudanças ocorrem naturalmente e de baixo pra cima, na maioria das vezes (isto é, nascem nas camadas populares e se espraiam para outras classes de falantes). Estados e municípios proibirem que se use nas escolas e órgãos públicos é como enxugar gelo, se houver adesão maciça da população.
É bastante comum os usuários de uma língua manifestarem reações diversas a inovações no sistema. As inovações podem vir de vários estratos sociais, mas as reações costumam ser negativas se esses estratos são marginalizados. A língua também é um índice de identificação social. No nível sonoro, nosso sotaque nos marca como pertencentes a um grupo. Ao nascer, somos expostos à língua do nosso meio e a adquirimos inconscientemente. Isso se dá independentemente de nossa reação pessoal a esses sotaques. Podemos não gostar do “s” chiado dos cariocas, do “r” do interior de Santa Catarina (que não distingue ‘carro’ de ‘caro’ ou ‘murro’ de ‘muro’), ou do “r” caipira do interior de São Paulo e partes do Paraná. Nosso gosto pessoal não faz muita dif12
erença. Essas pronúncias existem. Ponto. E vão continuar a existir.
E esse fenômeno vale para os outros níveis da gramática. Pessoas com mais escolaridade também não fazem todos os plurais o tempo todo. Talvez você, leitor com grau universitário, duas pós-graduações e livros na estante da sala ache que não. Talvez você acredite que não fale da mesma maneira que o frentista que não terminou o Ensino Médio. As pesquisas nos mostram que a diferença é só de grau. Pessoas com mais escolaridade usam mais a concordância tradicional de número. A grande questão é porque não nos corrigimos, já que passamos a vida escolar toda aprendendo que a gramática estabelece que o “correto” é ‘as meninas espertas’ e não ‘as menina esperta’.
Ou seja, se eu, você ou o Papa não gostamos de ‘todes’, isso é um problema particular nosso. Até onde sei, embora o STF tenha decretado que é inconstitucional proibir o uso da linguagem neutra, não há ninguém obrigando o uso de ‘elu’ ou ‘ile’. Se alguém do seu círculo social em algum momento da vida decidiu que não se identifica mais como homem, e agora quer ser ‘ela’, ou vice-versa, chamá-lo como ele deseja, é só uma questão de educação e respeito. Mas, para muitos, respeitar o diferente é aceitar a sua existência, aceitar que fazem parte do nosso convívio social, o que para um preconceituoso é muito difícil fazer.