PROJEÇÕES DA HISTÓRIA

Tempus fugit

Hoje em dia, os relógios estão em todos os lugares. Na televisão, no computador, no smartphone e, até mesmo, no forno de microondas, na geladeira e em alguns modelos de fogão. Chega a ser sufocante! É virtualmente impossível não saber que horas são. Não que isso seja recente. Da minha infância, guardo com nitidez a memória das vezes em que me era pedido para ligar para o número 130, da Telesp, para conferir a “hora certa” e sair ajustando todos os relógios da casa que, teimosos, insistiam em adiantar ou atrasar alguns minutos a seu bel-prazer. Claro que, então, os ditos cujos não haviam sido embutidos em lugares tão estranhos quanto a porta de uma geladeira… mas o relógio de parede acima da mesa de jantar, os rádios-relógios localizados ao lado da cama e os minúsculos equipamentos de pulso cumpriam bastante bem sua função de não me deixar atrasar para a aula, mesmo que essa fosse minha vontade. Eu já nasci em um mundo dominado por números digitais exibidos em pequenas telas de cristal líquido (me desculpem os mais antigos, mas, então, os ponteiros já haviam se tornado “coisa de gente velha” antes de voltarem à moda com força total, nos anos 2000 – hoje sou fanático por eles). Um domínio tão absoluto que, totalmente naturalizado, torna difícil lembrarmo-nos de que o tempo do relógio não é um dado natural, absoluto, e que houve épocas nas quais os relógios não eram onipresentes e senhores incontestes de nossos compromissos – mesmo os mais triviais. O tempo do relógio é uma construção cultural, concebida para atender a objetivos bastante claros.

Consideremos, por exemplo, o cotidiano em qualquer vila brasileira do século XVIII e em seu entorno. A vida era bastante diferente. Não existia, então, qualquer sentido em saber se agora são 11:34 da manhã ou 11:36… esses dois minutos não fariam com que seu empregador o acusasse de sabotar sua produtividade ou que sua nota bimestral fosse ruim por não ter entregado a prova a tempo. Nada disso! Caso você estivesse em uma propriedade rural, a questão girava em torno das condições climáticas que permitiriam ou não realizar o trabalho na terra. Da duração da luz natural que permitiria realizar com maior facilidade as atividades cotidianas – minha avó sempre foi adepta da expressão “esse dorme com as galinhas e acorda com os galos” para se referir àqueles que, como eu, costumam dormir e acordar cedo. Caso vivesse em uma vila, o importante seria saber a que horas começaria a missa, e para isso todas as igrejas foram equipadas com relógios e sinos para avisar aos fiéis. Se o objetivo fosse acompanhar as últimas notícias, então o jeito seria esperar pela chegada da próxima tropa de burros, carregadas de cartas e jornais datados de semanas antes. Festas e saraus eram do domínio da noite, e seu início era marcado pelo por do Sol. Seu fim? Claro! Quando o sol está para nascer, nos ensinam os romances de época. Verão? Boa época para produzir, pelos dias mais longos, ou para se divertir, pelas temperaturas mais altas. Inverno? Melhor assar pão, acender o fogão a lenha e ficar em casa, talvez lendo. Isso não mudou muito, convenhamos. Mas, hoje, mesmo essas atividades triviais são pautadas por relógios que, vigilantes, estão sempre prontos para nos avisar de que esquecemos alguma coisa que devíamos estar fazendo precisamente naquele minuto, contribuindo para o sentimento de culpa e ansiedade que se tornou marca dessa primeira metade do século XXI. Cercados por relógios, entregamos a eles o total controle de nossa existência, perdendo completamente o direito a decisões autônomas e soberanas acerca de nossos próprios afazeres. Quando foi que decidimos proceder assim?
Então, a questão é que nós não decidimos. Pelo menos não a maioria de nós. A grande mudança ocorreu durante a Revolução Industrial, aquele mesmo processo econômico e social que nos tornou fanáticos por tudo que é moderno e tecnológico (desde máquinas de tear a vapor até os mais recentes iPhones) ao mesmo tempo em que nos forçou a mudar para cidades barulhentas e caóticas, das quais fugimos nos refugiando em cubículos minúsculos que chamamos apartamentos (eu chamo, mesmo, é de “apertamento”) porque, afinal de contas, cuidar de quintais consome muito tempo. E quando chegamos de nossos empregos queremos mais é descansar nossas horinhas contadas porque, afinal de contas, amanhã teremos de trabalhar de novo. E de novo. Sempre seguindo o ritmo dos relógios. Chegar em casa às 18:30, preparar a janta até às 19hs, jantar, tomar banho rapidinho para dar tempo de assistir ao episódio de 57 minutos da série. Ao final, deitar na cama, rolar os feeds do Instagram até dar sono – o que não pode demorar muito – e dormir, já com o despertador do celular preparado para que sejamos acordados no horário preciso amanhã. O ritmo é tão preciso que, cúmulo dos cúmulos, passamos o ano ansiando pelas férias nas quais, subitamente libertos dos compromissos profissionais, nos entupimos de agendas variadas capazes de pautar nossos dias evitando, assim, a ansiedade inerente ao processo de decisão – fenômeno tão bem explicado por Jean-Paul Sartre. Se o escravo se define como todo aquele que não possui a posse de si mesmo, podemos afirmar sem medo de errar: nos tornamos escravos de nossos relógios, carrascos cruéis e onipresentes que não nos permitem esquecer, nem por um segundo que seja – oh, ironia! – de sua existência.
Para o mundo industrial, a questão que deu origem a toda essa maluquice era bastante simples: como mensurar e regular a produção? Como controlar o ritmo de atividade em um ambiente artificialmente iluminado, artificialmente ventilado, artificialmente coberto, artificialmente organizado? Como definir um “dia de trabalho”, ao final do qual os salários teriam de ser pagos? Para problemas artificiais, soluções artificiais. E eis que os relógios, incríveis e complexos mecanismos que ainda hoje fascinam ao extremo a mim e a tantos outros, foi alçado à posição de quase divindade. Ele não depende do clima, da luz do sol, dos ventos. Depende apenas que alguém lhe dê corda ou, mais recentemente, lhe troque a bateria ou coloque para carregar ao final do dia. A mágica estava feita. Se o trabalho passou a ser regulado pelo tempo matemático do relógio, passou-se a imaginar que, quanto mais tempo passamos trabalhando, maior o salário que recebemos (o famoso bordão “tempo é dinheiro”, sempre mais válido para uns que para outros). Assim sendo, tempo de repouso ou lazer passou a ser associado a tempo desperdiçado, perdido: um tempo no qual não estamos ganhando dinheiro. Dinheiro que, mais do que nunca, com a Revolução Industrial se tornou nosso único meio de sobrevivência. Então, é preciso trabalhar, produzir, sempre, sem descanso, sem cessar. Movimento, sempre. Imobilidade é para os fracassados. Já conferiu seu relógio? Viu que horas são? Então… tenho certeza de que está esquecendo algo. Alguma coisa acontecendo, dinheiro, poder, oportunidades circulando pelo mundo e você aqui, sentado, lendo esse artigo. Não sente vergonha? Na religião do século XXI, improdutividade é o maior pecado que há! E agora me dê licença o amigo leitor, pois preciso encerrar esse texto. Sabe como é, estou de férias, tempo de repousar os relógios na gaveta e tomar o controle da vida. As janelas estão fechadas, então não sei se é dia ou noite. Experimento um sentimento de desorientação, mas ele há de passar. Será, então, tempo de retomar o trabalho e os relógios. Mas isso é assunto para outro tempo, um que há de vir eventualmente ou me ser imposto por algo ou alguém. Não importa! Encerro, enfim! Até a próxima!

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