ONDE COMEÇA A SAÚDE?

A Região do Contestado e aspráticas curativas não convencionais

A Guerra do Contestado, luta armada entre os caboclos e as tropas militares estaduais e federais ocorrida entre 1912 e 1916, pode ser considerada um dos maiores conflitos sociais da história do Brasil. O cenário da revolta foi uma extensa região de planalto compreendida entre Santa Catarina e Paraná, cuja jurisdição disputada pelos dois Estados concedeu o nome à conflagração por se tratar de “terras contestadas”. O litígio territorial na esfera federativa coincide circunstancialmente com o grave problema social enraizado nos desmandos locais por parte dos “coronéis”, na posse da terra pelos caboclos e outros aspectos da exploração e ocupação da terra.
Aspecto marcante deste cenário é a existência de lideranças messiânicas que, considerando a cultura local, tornaram o conflito uma verdadeira “guerra santa”, permeado pelo fanatismo religioso e apoiado na crença da salvação milagrosa tanto para as questões sociais beligerantes quanto para outros infortúnios do cotidiano, como é o caso das doenças e do cuidado com a saúde. Neste último aspecto, destaca-se o curandeirismo como proposta resolutiva dos problemas de saúde, o que marca não só a cultura dos caboclos da Região do Contestado, como também de muitas regiões do Brasil ainda nos dias atuais.
Neste sentido, podemos lançar um olhar sobre os saberes dos curandeiros, sobre as práticas da medicina popular e suas raízes na cultura do povo, especialmente daqueles que humildes e carentes, não tinham acesso a medicina tradicional, a educação formal ou ao conhecimento científico. Assim, ainda tempos de hoje em que a medicina convencional promoveu a medicalização do processo saúde-doença, é interessante perscrutar as crendices populares e o modo como as pessoas pensam seu corpo, sua saúde e como tratam suas doenças na ausência do saber médico acadêmico, alopata e intervencionista. A riqueza de fitoterápicos da farmacopeia brasileira, especialmente nas áreas de florestas densas e diversificadas, enseja uma reflexão sobre o papel do saber das pessoas sobre o que faz adoecer e o que faz curar. No contexto da Região do Contestado essa temática aparece com vigor, pois os monges que aqui lideraram grandes comunidades, também exerciam o papel de curandeiros, ao lado de rezadeiras, benzedeiras e parteiras que marcaram a vida e o imaginário dos caboclos do oeste e planalto norte catarinense, bem como do sul do Paraná.
Retornando à análise do Contestado, acreditamos ser necessário recuperar o surgimento da figura histórica dos “monges”, influenciadores espirituais do povo caboclo, e que aparece em outras situações ao longo da história do Brasil. Além de mentores espirituais e líderes religiosos, estes monges curavam e orientavam as pessoas a cerca de sua saúde, introduzindo crenças e métodos terapêuticos respeitados por seus seguidores e que, muitas vezes, influenciavam o imaginário popular e produziam uma concepção própria de saúde e doença. Esta influência do “curador” permanece ainda hoje evidente na cultura regional que, embora procure a medicina formal, não descarta a possibilidade de recorrer a curas alternativas.
Assim, a reunião de caboclos ao redor do curandeiro pode ser entendida na perspectiva da “doença como metáfora social”. Nesta linha de pensamento, emprestam-se as ideias de Durkheim e entende-se que o doente está sujeito às representações sociais que o rodeia. O monge do Contestado praticava a cura através das ervas e conquistava a simpatia da comunidade por interpretar a doença com uma perspectiva cosmogônica, ao que Minayo (1988) acrescenta, “a noção de etiologia ultrapassando o campo estrito da biomedicina no espaço e no tempo e atingindo também o universo de considerações antropológicas e metafísicas”.
Recuperar a relação complexa que tinham os monges do Contestado com seus doentes, abandonados por uma medicina tecnicista, pode recentralizar o sujeito na relação médico-paciente. O médico ou terapeutas dos dias atuais deve resgatar a prática de ouvir as pessoas e operar efetivamente como agente de cura, e não somente como interpretador de exames sofisticados e conhecedor de etiologias. Quantos de nós necessitamos não mais do que ser amparados por um arrazoamento de nossas angústias e sofreres que considere nossas crenças, dúvidas, incertezas? Colocar-se no lugar do outro, incorporar o subjetivo de nosso interlocutor e considerar a pacificação do espírito o caminho para a felicidade pode tornar alguns de nós “curadores modernos”, continuando em nosso microcosmo, com as devidas permissões e proporções, a saga dos monges santos do Contestado.

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