CONTEMPLANDO

Gíria

Atendendo a uma provocação do editor do jornal, vou falar sobre gírias. Mas o que se entende por ‘gíria’? No uso cotidiano do termo e na Linguística, ele abarca uma série de fenômenos. Podemos entender a gíria como a linguagem informal popular de uma maneira geral, ligada aos jovens ou não; ela tem algo de efêmero, podendo sair de uso de uma geração para outra. Nos anos cinquenta e sessenta os jovens faziam o footing, na minha época de adolescente a gente saía dar uma banda, hoje os jovens saem dar um rolê. Note aí que falei dos jovens. Mas a gíria não está ligada apenas a eles, ela também é um signo de grupo, o que significa que grupos sociais diversos criam espontaneamente expressões conhecidas apenas por seus membros, impedindo que os estranhos entendam plenamente do que se está falando. Nesse sentido, os grupos podem ser de uma determinada região (um bairro, uma cidade, uma região mais ampla dum estado etc.) ou grupos sociais mais coesos (policiais, traficantes, marginais, usuários de drogas, jogadores de futebol, adolescentes, evangélicos etc.). Justamente por também ser um signo de grupos muitas vezes marginalizados, há um certo preconceito em torno da gíria – tema que tentarei aprofundar logo abaixo. Mas veja que ao mesmo tempo, por ser signo de grupo, também fala-se de gíria como sinônimo de ‘jargão especializado’ (a gíria dos economistas, dos juristas, dos pedagogos etc.). Todas essas definições são trazidas nos dicionários. E aqui destacamos dois aspectos: signo de grupo e informalidade.
Essas duas características são fundamentais para entendermos as reações sociais diante dos vocabulários e expressões da gíria. Se é natural que todo grupo social desenvolva expressões e construções gramaticais na construção da sua identidade, por que temos reações de aversão diante de algumas (especialmente dos jovens, dos traficantes, dos marginais) e não de outras? (embora o economês e o juridiquês tenham sua utilidade e praticidade, é também um instrumento de controle, pois impede que o leigo compreenda plenamente os textos e sempre precise do auxílio de um advogado para entender os seus direitos e deveres). A aversão ao diferente é parte da nossa natureza. Aprendemos desde muito cedo a desconfiar do desconhecido que bate à nossa porta; se ele fala de uma forma diferente da nossa, isso indica que não é da nossa comunidade.
Há outro aspecto envolvido nessa questão também, o fenômeno da padronização linguística. Desde que Dionísio da Trácia inventou a tal da Gramática no séc. II, a conceituou como “arte de bem falar e escrever” e disse que há uma variedade do grego que deve ser cultuada e imitada e outra que deve ser desprezada, essa mentalidade linguística vem sendo repetida como uma verdade universal e natural. Mas note que ela é uma construção histórica. Escritores, professores, editores, gramáticos, autores de manuais didáticos cotidianamente escolhem (destaco aqui o verbo escolher) usar algumas palavras e construções gramaticais e não outras. Essas escolhas refletem valores que são atribuídos às palavras e às construções gramaticais pela comunidade de usuários da língua, e esses valores são geralmente atribuídos de cima pra baixo: é a classe política, econômica e culturalmente dominante quem decide o que é o certo ou errado, o que é o feio ou o bonito. Note que a aversão não é com a língua em si, mas com quem a fala. Se eu falo como os traficantes e marginais, estaria me identificando com eles.
Como a língua é um organismo culturalmente vivo, ela está em constante mudança. Assim, não é raro vermos movimentos de baixo para cima e de cima para baixo, isto é, a fala popular influenciando a fala de classes mais educadas e o inverso também. Veja o caso do verbo curtir, um verbo proveniente do vocabulário dos usuários de drogas. Hoje é amplamente utilizado em jornais com o significado de “desfrutar” (Fulano curte as férias na praia tal) ou “gostar” (podemos estar curtindo alguém, podemos curtir a postagem de alguém nas redes sociais). Além dele, muitas outras expressões que nós usamos hoje, não necessariamente em situações informais, também vieram desse meio: barato (o efeito da droga), viagem (quem está viajando está sob efeito de drogas), dar bandeira (quem está dando bandeira não consegue esconder que está sob efeito de drogas). Aposto que muitos dos leitores que usam essas expressões no seu dia a dia não sabiam da origem dessas palavras.
No caso de construções gramaticais, a situação é um tanto mais complexa, pois diferentemente do vocabulário, a morfossintaxe recebe um escrutínio público diferenciado. Tendemos a julgar o valor da fala pelo que aprendemos ser o correto na escrita. Mas essas são modalidades de uso distintas. Para começo de conversa, a fala é espontânea e menos monitorada, enquanto a escrita envolve planejamento e permite a reescrita. A nossa fala é recheada de expressões dispensáveis na escrita, especialmente conectivos que testam o contato com o ouvinte, como né, tá ligado, ok, olha só, daí; vocativos (cara, meu, piá, guria, menina etc.) entre muitas outras. Mas notem também como o jornalismo televisivo e o rádio estão se permitindo usar cada vez mais construções antes exclusivas do reino da fala, como as reduções de verbo estar, está/tá, contração da preposição para/pra, a não pronúncia do r final dos infinitivos, comer/comê, dormir/dormi, e assim por diante.
A existência da gíria é um fenômeno cultural e onipresente nas línguas do mundo, especialmente em sociedades complexas como a nossa. As palavras e construções gramaticais subirem na vida, mudarem de classe social, alterando seu estatuto também é um fenômeno bastante comum. Antes de julgarmos, precisamos ter em mente o que de fato estamos julgando, se é a língua ou seu usuário.

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