COISAS DA BOLA

BASTIDORES DE UM CHUTADOR DE BOLA

A contenda de domingo fora pegada. Um nobre e amigo repórter entrevistava o jovem boleiro, destaque daquele cotejo. Ele relatava fatos das suas andanças jogando bola. Antenado no que ele falava ao microfone, meus pensamentos como se estivessem em um grande comboio puxado pela Maria Fumaça 310, de forma meio enfumaçada e lenta viajou até um tempo pretérito na década de ouro do futebol profissional de Porto União da Vitória, 1970. Junto a esses pensamentos, também comecei a folear nos meus alfarrábios, vários recortes de jornais daqueles idos, provas incontestes de que eu fora um chutador de bola, profissional. Vitórias maiúsculas e tristes derrotas. Gols cobrando falta, de perto e do meio da rua. Tentos contra o patrimônio e tomadas de banho mais cedo por excesso de virilidade. Atuações de gala, e aquelas, onde nada deu certo, um fiasco. Os olhos umedeceram. Voltei mais no tempo, quando, ainda com aquele muito viço, comecei a fazer parte do esquadrão da Pantera Azul Dourada. Lembrei mais. O marejamento virou em abundantes lágrimas… Verde de muito para aquela empreitada, mas treinando com muito afinco na esperança de subir ao “onze” principal, eu imaginava e tentava enxergar como seria a minha vida lá adiante. Procurava o meu espaço naquilo que mais gostava na vida, tentava subir degraus nesta linda e às vezes ingrata profissão, que te leva rapidamente do paraíso para a porta do cafundó da terra do “cão tinhoso”, não vista por muitas pessoas interioranas e conservadoras, como uma labuta digna, muitas vezes sendo azucrinado pelo torcedor colado no alambrado, chamando de “fila-boia”, chupa-sangue e enterra time. Mas não importava nada disso, eu estava dando asas à um sonho. Nos trabalhos de condicionamento físico sempre era um dos primeiros a começar e o último a parar. Muitas vezes treinava sozinho, ensopava a camisa e era alvo de chacotas. Quando recluso na concentração ou no meu lar, assistia “tape” de pelejas e prestava atenção naqueles jogadores da minha posição. Levava certa vantagem sobre muitos colegas da bola. Chutava com as duas, mas destro, tinha uma bimba danada. Cobrava faltas como poucos. Quando batia tiro de meta com uma bicuda, a bola saia zunindo. Nos bicudões rasteiros, ela saia escrevendo o chão e o guardião não segurava, batia roupa ou a redonda levantava as malhas. Mogangas centradas na minha área me levavam ao quase êxtase, principalmente quando os vanguardistas contrários eram de tamanho alto. Adorava disputar uma bola de cabeça, lá em cima, na maioria das vezes lograva êxito e isso me levava quase ao delírio. Tudo fruto de treinamentos. Tinha comigo, que na hora que surgisse uma chance de entrar no palco verde como titular, agarraria a oportunidade com unhas e dentes, superaria os próprios limites. Por essa vontade, arrojo e uma determinação de poucos, sofria muitas gozações dos boleiros viajados, principalmente dos que tentavam levar a profissão na “manha”. Eles nem imaginavam: este piá tinha uma meta. Tenho claro na cachola, quando certa vez saí do treino só “caibro e vigamento”, com dores pelo corpo todo. Me dirigi até a sala do massagista, na intenção de usar a única banheira que existia por ali para fazer trabalhos de imersão em gelo. Ela estava pronta para ser usada. Mas, o massagista rindo no meu fuço, fez questão de deixar claro, que eu somente deitaria dentro daquela banheira quando fosse titular, e que nela tinha exclusividade o capitão do esquadrão, que era um verdadeiro mandachuva no elenco. Ainda nítido na ideia, tenho, de ter visto o treinador passar por ali, e ao escutar o palavreado, não disse nada e queimou o chão. Tudo estava correndo na normalidade, eu sentia, logo vai chegar a minha hora. Até, que em um coletivo apronto em uma sexta-feira, o ponta de lança titular, na malandragem, metendo o solado por cima da bola, tirou fiapos ao me rasgar a canela de cima a baixo em um lance de dividida. O meu tornozelo azulou e ficou do tamanho de uma laranja de umbigo. Três meses no Departamento Médico. Meu papai pediu para eu abandonar. Nem por isso joguei os panos desistindo de buscar o meu sonho. Envergar um dia aquela camisa como titular. Mesmo a custo elevado. Me recuperei. Aquilo foi mais um incentivo, passei a treinar com mais garra. Novamente eu estava voando baixo, bem tecnicamente e com muito sebo nos rins. Eis, que num repente, disputando aquele certame da elite paranaense com esquadrões de apurada técnica, em uma segunda-feira pela manhã, sem eu esperar, o treinador me chamou em sua sala e me deixou a par que no domingo, disse ele: – Creio que é chegada a tua hora meu filho. Serás um dos beques titulares contra o Clube Atlético Paranaense. E mais! Disse que eu seria o capitão do seu “onze” e que confiava muito em mim. Nos treinos coletivos daquela semana, com a escalação colada na porta do vestiário, apareci fazendo parte da becaria titular. Muitas lições, posicionamento e jogadas ensaiadas pelo meu setor eram feitas constantemente. O treinador parava o lance para me orientar. A boleirada em tom de gozação começou a me chamar, longe dele, de “fiinho do home”. O Estádio do Ferroviário estava arrebentando de gente. Minha mamãe junto com as vizinhas e suas sobrinhas criavam um reboliço na arquibancada de cimento. O meu pai com seu inseparável chapéu, embaixo da caixa d’água, atrás do gol de entrada, era só nervos. As bandeiras tremulavam, e como era de se esperar, o pau cantaria dentro e fora das quatro linhas. E cantou, muito. Isso já tinha virado uma normalidade nos prélios entre iguaçuanos e atleticanos. Nas arquibancadas onde se encontravam as duas torcidas, palavras de baixo calão, peito no peito e empurrões fazia com que o policiamento tivesse um trabalho quase impossível de realizar. Muitos torcedores foram para as vias de fato e ficaram com os lombos ardidos das cacetadas levadas dos paus das bandeiras. Dentro do retângulo verde, as touceiras ganhavam voo. O balão era disputado a cada milímetro. Pau a pau. Ali não tinha “o meu pai tem bodega”. Era chispa de todo o lado. No apagar da vela, quando o mediador deu o trilo final, o escore apontava 1 a 0 para a Pantera Azul Dourada. Quebrava-se um tabu. Pela vez primeira triunfava a Pantera diante do Furacão. Ao sair de dentro do gramado junto com o meia-atacante já consagrado, Barcímio Sicupira, que também atorado de alça de gaita, me fez a afirmação: – Porra piá! Com essa idade, batendo muito, chutando tudo e já com o esparadrapo de capitão! Você vai longe. Falei para ele, que aquele instante era muito esperado, enfim, fora meu, e que eu não poderia tê-lo deixado passar em um piscar de olhos. Que fui abençoado. Guardei somente para mim aquele pequeno diálogo. Hoje, Barcímio já está do outro lado da rua da vida, ascendeu. Cracaço. Todos faceiros após o confronto. Em festa e muita cantoria dentro de um ônibus, retornamos para a Sede da Pantera para tomar banho e jantar. Ainda dentro do ônibus, sem que os dois percebessem, ouvi o treinador solicitando para o massagista preparar a banheira de gelo para que eu fizesse uso. Poucos minutos após chegarmos no alojamento, fui chamado até a sala de massagem. Dando uma risada marota e me fitando de frente, o massagista apontou com o dedo indicador para a banheira que estava cheia de gelo e pronta para que eu fizesse uso, e falou: – Guri! Você fez por merecer. Fiquei mais alegre, quando o treinador abriu a porta, e colocando a cabeça para dentro junto com o tesoureiro, que pagou o nosso bicho pela vitória, deu um baita sorriso e falou para o massagista: – Cuida bem do meu capitão. Me deliciei dentro daquela banheira cheia de gelo. Não haveria dor pelo corpo que a minha felicidade não curasse. Depois do jantar, já noite adentro, muitos de nós, fomos no salão boêmio conhecido como Diogo, bem próximo, grudado na beirada do rio Iguaçu. Ao som do órgão, teclado pelo senhor Severino, era bonito o que se via lá dentro. Misturados com muitas “damas”, vários torcedores que estiveram no campo, também faziam questão de pagar cervejas para os boleiros. Como eu não bebia nada com álcool, somente conversava com eles, porque, mesmo sendo muito jovem já tinha ficado esperto, que os mesmos que pagavam cervejas e paparicavam nas vitórias, eram aqueles que vaiariam e xingariam nas derrotas, e o primeiro comentário seria que éramos uma catrefa que vivia na gandaia. Dançando e deslizando a noite toda naquela pista cheia de talco e serragem, no amanhecer, para aproveitar o dia de folga daquela segunda-feira, enroscado com uma linda dama da orgia, rumei até o casarão conhecido como Boneca do Iguaçu, situado num canto da ponte férrea, e me deleitei na luxúria. Continuei a farra. Afinal! O tesão estava na “copa do pau”.

COISAS DA BOLA são fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outras frutos da minha imaginação. Qualquer semelhança será puro acaso.

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