PSICOLOGIA PARA HOJE

É doença mesmo? Reflexões sobre a patologização emedicalização da vida

Situação contemporânea cada vez mais presente em nossa cultura é a patologização da vida, em que expressões da natureza humana são associadas a categorias médico-psiquiátricas, a fim de enquadrá-las como doenças mentais. Assim, patologizar é transformar em doença comportamentos ou sofrimentos, dimensões do humano que não necessariamente o são. Tão forte é esta tendência que foi instituído o dia 11 de Novembro como o Dia Nacional de Enfrentamento à Medicalização da Educação e da Sociedade, pelo Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo e, tomara, seja abraçada esta causa por todos os outros Estados.
O termo patologização vem de patologia, cuja etimologia vem do grego páthos, que significa doença e logos, que remete a estudo, tratado. Mais do que um termo, a patologização vem se tornando cada vez mais, uma prática que rotula os mais variados comportamentos humanos e os classifica como distúrbio, doença que requer medicação.
Em consequência desta tendência vem sua complementação, a medicalização, ou seja, a utilização de remédios. Tal prática advém, muitas vezes de questões educacionais seja no lar, seja na escola. Diante do desafio e da dificuldade em colocar os limites, promover acolhimento da criança em sofrimento ou desorientada, terceiriza-se para a busca de um diagnóstico que justifique fragilidades e isente os orientadores de sua ação de dar contorno ao sujeito e não à sua suposta doença ou patologia, distúrbio.
Historicamente, pessoas que apresentaram alguma diferença em seu modo de ser foram marginalizadas na sociedade, alvo das mais diversas estratégias de violência física, simbólica, preconceito e exclusão. Na Idade Antiga, as crianças com deficiência eram consideradas subumanas e, por isso, abandonadas. Na Idade Média, a deficiência era encarada como uma questão demoníaca, como um castigo divino. Depois, com a influência da doutrina cristã, as instituições de caridade acolhiam essas pessoas, embora continuassem sendo marginalizadas. Quanto essa história ainda se faz presente no nosso dia a dia, quando não conseguimos ou não sabemos incluir pessoas que estão “fora” da norma? E a norma, o que é? É o que padroniza, iguala, despersonaliza? Muitas são as definições deste termo e aqui não é este o questionamento, mas sim quem é a pessoa rotulada ou “anormal”. Existem doenças, patologias, isto é verdade, mas a cada ano, mais e mais doenças “aparecem” e por trás delas um medicamento a ser vendido, cujos efeitos nem sempre são eficazes. O diagnóstico e o laudo muitas vezes resultam em formas simbólicas de exclusão, como se fazia ao internar ou depositar pessoas com comportamentos não assimilados pela família e sociedade em clínicas ou mesmo em hospícios. Não que não existam distúrbios graves que inviabilizem a convivência. Me refiro à profusão de diagnósticos e medicalização que temos presenciado cada vez mais e cada vez mais cedo, já na vida de crianças e adolescentes. É preciso promover a inclusão da pessoa e não de seus rótulos psiquiátricos cada vez mais numerosos e mais banalizados no vocabulário popular. Quando a relação se estabelece com a patologia, com o problema, com a doença em vez de com o sujeito, incorre-se em confundir a pessoa com seu problema. Muitos de nós temos problemas e sofremos com eles enquanto não os resolvemos. Aprendemos a conviver quando não há solução, mas quando vemos e nos relacionamos com o rótulo e não o ser humano e suas especificidades, é preciso questionar onde realmente está o problema. Tão grande é a banalização dos rótulos psiquiátricos com fins de medicalização que instituiu-se uma data para sensibilizar a sociedade e profissionais da saúde a respeito. Assustador é perceber que muitas, mas muitas pessoas se identificam com seus sintomas e problemas: SOU ansioso (e seu nome, como é?), SOU bipolar, tenho TDAH, fulano é bipolar, narcisista, codependente. Estudiosa do assunto, Adriane Fugh-Berman expõe: “Existe um número muito maior de pessoas saudáveis do que de pessoas doentes no mundo e é importante para a indústria farmacêutica, fazer com que pessoas saudáveis pensem que são doentes. Existem muitas maneiras de fazer isso. Uma delas é mudar o padrão do que se caracteriza como doença. Outra é criar novas doenças”. Altera-se a norma e cria-se enfermidades, diz outra pesquisadora que menciona o livro “Vendendo doenças, vendendo enfermidades”, de dois jornalistas dos Estados Unidos. Este livro foi escrito a partir do acesso de seus autores a atas das reuniões, a vídeos das reuniões das indústrias farmacêuticas. Estamos falando do quê? De diagnóstico? De etiqueta? Ou de uma vida transformada em mercadoria?
Méritos à série Império da dor (Netflix) que também vem dando visibilidade a esta questão.
O DSM-5, catálogo de classificação de doenças, aumenta de páginas a cada edição. A fronteira entre uma angústia normal e um transtorno psiquiátrico é difusa e mudanças nas definições de transtornos e suas aplicações, podem rotular situações humanas como doenças mentais. Com isso, empresas farmacêuticas, travestem dores e sentimentos em doenças psiquiátricas para vender seus remédios. Aflição normal é uma parte da vida e não deve ser falsamente rotulada como patologia mental. Na área educacional, o que todos conheciam como birra, hoje, pelo catálogo acima mencionada é descrito com transtorno desafiador opositor. O sentimento humano conhecido como tristeza, incluindo luto por perda de ente querido, virou depressão. E para cada dor há um remédio… A cada corte de sintomas, indicativos de algo a ser acessado e processado em nossa interioridade, menos introspecção e menos possibilidades de elaborações libertadoras e criativas.
As doenças existem, mas sua banalização e generalização necessita questionamento. Qual seria a resposta para estas perguntas: quanto uma criança pode ser sonhadora e viver no mundo da fantasia sem risco de ser rotulada com déficit de atenção? Quanto uma criança pode fazer birras – e em qual intensidade – sem ser rotulada como portadora de transtorno disruptivo, descontrole de humor? Quanto um jovem pode não gostar de estudar sem risco de ser rotulado como portador de transtorno de aprendizagem ou TDAH? Pode não gostar? Quanto uma criança pode ser agitada e ativa sem risco de ser rotulada como hiperativa? Pode ser agitado? Tempos atrás, as crianças eram espertas, peraltas, desobedientes, sonhadoras, arteiras… Hoje, elas são hiperativas, desatentas, desafiadoras… Como se mede isso? Qual é a norma para definir? Os especialistas saberiam dizer? Rotula-se, medica-se e a arte e o desafio de educar, orientar rende-se à pressão comercial de cortar sintomas com medicamentos e não em mobilizar os recursos pessoais que transformam desatenção, agitação em criatividade e vida.
Em uma época em que há obrigação de ser feliz, evita-se toda e qualquer frustração, prática que tem boa (e equivocada!) intenção por parte de educadores, mas que inibe a possibilidade de criar e aprender a partir do obstáculo, coisa que as crianças fazem com prazer e senso de desafio quando encontrada em joguinhos por eles escolhidos, mas que são recebidos com crises e descontentamento quando encontradas na vida. Seria esta uma possível explicação para o resultado de conhecida e recente pesquisa que aponta, pela primeira vez na história, que o quociente de inteligência das novas gerações está menor que os da geração anterior?

Maris Stela da
Luz Stelmachuk
Membro da Academia de Letras do Vale do Iguaçu, ocupante da Cadeira 16, cujo patrono é Alvir Riesemberg

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