SOLIDÃO E SOLITUDE

Amanhecer de Maria

Maria abriu os olhos, era o fim de uma noite mal dormida. Virou a cabeça para o lado em busca do velho rádio-relógio que repousava na mesa de cabeceira. O aparelho piscava, a luz caíra em algum lugar na noite. Uma réstia de sol entrava pela cortina. Seriam sete horas? Era animador imaginar sete horas, horário do habitual café da manhã na casa da mãe. Procurou pelo celular, eram seis e meia. Teria de esperar pelo café. Ligou a TV e a desligou de imediato. Nos últimos tempos as notícias televisivas a entristeciam. Deixou a cabeça cair, pesada, no travesseiro. Hoje precisava que o dia fosse proveitoso. Desde que se aposentara cobrava-se pela realização de algo novo, proveitoso, porém, a inércia do corpo superava a mente desassossegada. O fato das colegas aposentadas seguirem com suas vidas — acreditava que despreocupadamente — com viagens para Aparecida, de muito a inquietava, mesmo que essas viagens não fizessem parte dos seus planos. Sim, Maria tinha alguns (poucos) planos, e as viagens estavam inclusas, menos para Aparecida. Nunca fora uma católica fervorosa, na verdade, não tinha fervor algum. Contudo, fora encaminhada, assim como os irmãos, ao ritual católico: batismo, confirmação e eucaristia. Deixou a igreja — jamais a espiritualidade — ainda na adolescência, o templo sagrado a cansava. Quando criança Maria costumava olhar para trás antes do início das cerimônias eucarísticas, gostava de reparar nas pessoas que entravam, as seguia com os olhos até que chegassem ao local escolhido, onde ajoelhariam e rezariam com veemência. Numa dessas olhadas deparou-se com o olhar da madrinha, e sorriu, mas não foi correspondida. Não demorou que a mulher relatasse ao pai sobre o comportamento inadequado da afilhada, ou seja, o “olhar para trás”. Lembra-se dela a encarar o pai na espera da repreensão. O pai não deu importância, mudou de assunto. Hoje reconhece que a madrinha tinha alguma razão, o tempo na Casa de Deus era gasto para reparar, não somente nas atitudes, mas também nas roupas dos cristãos. Senhoras trajadas de seus terninhos domingueiros combinados a sapatos foscos. Meninas de vestidos esvoaçantes, e rostos angelicais, acompanhadas dos pais ou avós (como seria estar acompanhada deles?). Quanto aos senhores, pareciam muito velhos, de posturas altivas, com seus ternos de linho amarrotados e sapatos desengraxados — ainda hoje costuma observar o engraxe ou desengraxe dos calçados masculinos. O reparar ultrapassava comportamentos e vestes alheias, até chegar ao odor do mofo impregnado nos tecidos que cobriam o rebanho que se aglomerava pelos corredores ao término de cada cerimônia, e que Maria, pequenina, sentia contrariada. Apesar de os pesares, a vida na igreja era divertida, principalmente nas manhãs de Natal, quando mais do que nunca havia no que reparar: casacos de pele, com certeza ganhos na véspera, exibidos em pleno verão. Etiquetas, ainda com os preços, a saltar para fora das vestimentas. Capas de chuva na alvorada ensolarada. Enfim, o reparar de Maria era inocente, sem qualquer sentimento de reprovação, apenas para fazer o tempo passar frente às palavras intermináveis e incompreensíveis do sacerdote. O tempo voou e pousou no amanhecer de Maria, e a fez sorrir. Hoje o dia seria proveitoso.

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