COISAS DA BOLA
Um causo nas águas (Verídico)

O sono não vinha e as águas do riozão, mesmo com quatro dias de solão, ainda teimavam em subir. Olhando do seu terraço o mar que tomara conta da parte de baixo da sua casa, aquele senhor, já septuagenário, se sentiu como um Zé ninguém. Uma enorme frustração e um grande arrepio lhe correu pelo carretel da sua espinha. Por pouco não teve um faniquito. Poxa! Era muita água ao redor. Num piscar de olhos, atinara, que ele sim, tinha feito algo dentro das suas possibilidades ao longo dos anos para tentar sobreviver a mais uma elevação das águas. Reformara a sua pequena casa deixando-a como uma palafita-sobrado, onde agora estavam acomodados os poucos móveis que conseguira içar. Com sua “muié” flagelada em casa de parentes, ele dormia por ali para proteger os seus parcos móveis dos gatunos, que durante as noites de breu, remando botes, faziam uma varredura nas casas sem ninguém. Ali de riba, passou por sua cachola que fora morar naquele local por não ter outra opção à época. Naquele lugar viveu poucas e boas, peregrinou do céu ao inferno. Viu que o seu sacrifício de uma vida valera a pena, pois seu único varão, agora um doutor em uma grande cidade era reconhecido pelo seu trabalho e pelo trato para com as pessoas, não importando a sua posição social, e isso lhe dava uma satisfação enorme. Mesmo com a insistência do filho, para que fosse morar junto dele na cidade grande, ele não arredara o pé dali. Passara a amar, e muito, aquele chão. Seu círculo de amizades estava ali. Sozinho naquela escuridão e escutando o barulho das águas, se sentiu um culpado quanto a elevação do rio, pois também se acomodara em cobrar a quem de direito. Ficara esperando como a maioria dos afetados, que genuflexos, agora viam que tudo estava como dantes. Antevendo o que viria após aquele mar baixar, vislumbrou novamente, como nas enchentes anteriores, aquelas casas e ruas parecendo uma verdadeira terra arrasada. Pela sua falta de atitude se sentiu como um merda, mas merda da pior espécie, sé é que existe, aquela merda da mosca varejeira que come a bosta da vaca. Se viu como o ínfimo de um nada. Como os outros viventes dali, comeu nas mãos dos mandatários de plantão. Não lhe restava nada mais a fazer, a não ser espernear, mas estava se sentindo cansado para isso. Se conformaria que ali a terra se transformara novamente em mar? Achava que em vida não veria a solução. Para aquele momento de baixo astral, sentiu vontade e tomou um gole de uma “braba”, que desceu queimando, parecendo mijo do capeta. Por mais que tentasse tirar algumas horas de sono, ele teimava em não vir. Ficar vendo aquele mundaréu de água o estava martirizando. Fez mais um “sacrifício” e bebeu mais um gole daquele xixi do capiroto. Alguma coisa começou a lhe cutucar, como que dizendo para ele descer daquela altura. Talvez batendo pernas aquela sensação ruim lhe saísse do corpo. Num atino, resolveu caminhar pela beira da enchente. Aguentando as dores das juntas, se agarrando como um mico em um pé direito da palafita, desceu no cuidado até o bote ancorado. Remando até próximo de um poste de luz, ali deixou a embarcação amarrada e foi esticar os cambitos em uma caminhada, que sem imaginar, seria longa. A claridade do dia começava a se fazer presente. Antevia-se que os raios solares não dariam o ar da graça. Torós à vista, indicavam que mais água jorraria. Com os pensamentos a mil, andando a esmo pela beirada da enchente, percebeu um fulano vindo em sentido contrário, que pela sua fuça via-se um desacorçoamento. O agasalho e o par de tênis, de marcas famosas, davam a entender que aquele vivente não seria um pouca bosta. Sentindo falta de uma prosa, para puxar um papo, o senhor da palafita perguntou para aquele cidadão se ele tinha visto um cão por ali. Surpreso, mas com os olhos murchos de tudo, o fulano disse que não. Não se sabe de onde e sem saber o porquê, o senhor da palafita, virara um tagarela, queria papo, e forçou um diálogo com o desconhecido:
– Porque você está acabrunhado? Está com algum problema de saúde? Um homem bem-apessoado e tão triste! Posso ajudar em algo?
Surpreso pelas palavras daquele senhor, o homem de agasalho respondeu:
– Dá para notar a minha tristura? Pois então! Não me resta mais nada a não ser ficar borocoxo. O meu mundo está desabando e eu decidi abandoná-lo. Não tenho mais forças para nada. Estou em dúvida se me jogo nas águas com o meu carro ou se me atiro da ponte ferroviária.
Pego de surpresa pelo dito, o septuagenário da palafita, em tom que inspirava confiança, emendou:
– Tá loco home veio! Nem pense nisso. Não existe problema sem solução. Quer me dar um voto de confiança e me contar o que se sucede?
Talvez por encontrar pela primeira vez alguém disposto a escutá-lo, mesmo que fosse um estranho, o desejoso de se matar abriu a matraca:
– Sabe! Eu e minha companheira não estamos nos dando muito de bem ultimamente. Vivemos brigando muito e estamos meio que separados. Estou tentando melhorar o meu jeito de ser para vivermos em paz, porque não quero ficar sem a minha família. Mas, o meu mundo caiu por completo está noite quando fui visitá-la. Peguei em flagrante ela dando para um cara, onde no mesmo quarto o meu filho, um ainda tico de gente, de cinco anos, em um pequeno colchão atirado no chão, dormia o sono de um inocente. Senti um calorão na minha testa, onde parecia que estava nascendo um par de guampas. Tive vontade de finar os dois amantes, só não o fiz, no ato, por causa da criança. Como um desvalido e inconsolável estou andando de um lado para outro pensando em como me matar. Não estou suportando essa dor no peito. Vou dar cabo na minha vida.
Vendo um suicídio eminente, intercedeu mais uma vez o homem da palafita:
– Você não é o primeiro e nem será o último a levar uma “gaiada”. Já pensou se todo mundo que levasse um par de chifres mandasse o rival para a terra dos pés juntos! Ia faltar cova. Deixa disso. Isso é coisa de peão fraco. Problema é ficar pesteado, doente. O resto a gente empurra com a pança. Será que você é tão frouxo a ponto de deixar o teu filho órfão? Imagine ele entrando na adolescência e sabendo que o pai se matou por ser um borra botas. Como vai ficar a cabeça dele? Sem um pai para amar e dividir as alegrias e conquistas! Mulher está cheio por aí. Já, já você arruma outra, que no frigir dos ovos você verá que poderá ser melhor que a tua atual companheira. Se ela te trocou por outro não foi de graça, motivos deveria ter. Deixe ela viver a vida. Sejam parceiros e criem a criança com muito amor.
O apito na chaminé de uma empresa dizia que era meio dia quando se despediram. Pensando ter conseguido, ao menos por enquanto, que aquele cidadão de agasalho não finasse por conta própria, pois aquela resenha mesmo abaixo de chuva, fora um sacrifício que momentaneamente surtira resultado. Achando que era hora de voltar para sua palafita-sobrado, aquele senhor septuagenário chegou no poste onde tinha deixado o seu bote. Não o encontrou. Lembrou que tinha esquecido de passar o cadeado. Alguém tinha surrupiado. Que fizesse bom uso. Correndo o risco de se afogar ou pegar uma peste, andando com a água pelo pescoço, chegou na sua palafita e molhou novamente a palavra com aquele mijo do capeta.
Quarenta dias com a casa embaixo d’água. O rio no sistema pinga-pinga já estava retornando ao seu leito, quase normal. A podridão deixada pelas águas fedia como que empesteando o ar. Mais uma vez era chegada a hora da limpeza e de mensurar os danos e prejuízos. Como previra aquele senhor da palafita, as casas agora à vista, com os móveis jogados em frente, cheios de lama e esfarelando-se, deixavam transparecer que ali a terra fora arrasada. Mas era novamente, o que se tinha para o momento. Não adiantava espernear.
Enquanto junto com sua esposa limpava a sua palafita-sobrado, teve a sua atenção chamada quando ouviu um assobio diferente. Riu internamente quando visualizou e reconheceu aquele homem do agasalho, que agora vestindo um terno de linho azul marinho tinha um largo sorriso na fachada. Junto dele, um menino e uma bela mulher. Aquele homem de terno ao cumprimentá-lo beijou sua mão. Nas barbas um do outro, aquele homem de terno, após ter se ajoelhado e ficado contrito, derramando lágrimas, disse que fora o Papai do Céu que os colocou frente à frente naquela madrugada, quando ele estava pensando em esquecer de puxar o ar. E que agora, junto com uma nova namorada, o estavam convidando para ser padrinho de crisma do seu filho. Queria atar laços sérios de uma amizade.
Demonstrando muita felicidade por dentro e por fora, com os pensamentos divagando, aquele septuagenário senhor da palafita-sobrado, tirara do perrengue vivido, mais um aprendizado. Cansado de uma vida sofrida, com o corpo surrado e já meio arqueado pela fracura dos ossos, ele teve a certeza que sempre fora um baita vencedor. Internamente, pediu perdão ao Ser Superior por algumas vezes fraquejar. Percebeu que a sua vida valera a pena. Fora com muita garra o timoneiro da sua família, prova disso era o seu filho médico que acabara de chegar em sua Mercedes-Benz, não para mais uma vez tentar levá-los dali mas para ajudá-los na recuperação da palafita-sobrado. Ele tinha entendido, que sua mãe e seu pai nunca deixariam aquele chão que amavam na beirada do Majestoso, e que algumas vezes em anos se tornava Tenebroso Rio Iguaçu, mesmo que agora eles tivessem que providenciar um outro bote.
Do escritor da periferia – Craque Kiko.
COISAS DA BOLA são fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outras frutos da minha imaginação. Qualquer semelhança será puro acaso.