Atalaia de Acaiene

O Carnaval

Moramos em um país com diversos problemas, violência, desigualdade, fome, desagregação social, enfim. É muito fácil, nessas condições, desacreditar no nosso potencial enquanto país, ou até como possibilidade civilizatória. Acabamos por nos comparar ao ideal eurocêntrico de sociedade: ordeira, sistemática e contratual. Eu mesmo já caí nesse engodo, de pensar que a solução para o Brasil passa por copiar os países ditos desenvolvidos, afinal, é o que é apresentado enquanto saída para uma nação do capitalismo periférico como o nosso. Acontece que não há solução para o colonizado que se dedique a mimetizar o seu algoz e, mesmo que seguíssemos os passos da metrópole, replicaríamos a desgraça do capitalismo tardio: explorar, ocupar e pilhar outras nações afim de afirmar nossa identidade e criar estabilidade interna ao custo da instabilidade alheia.

Com a graça dos meus santos, pude entender meu equívoco e mudar minha própria posição. E creio, cada dia com mais intensidade, que vivemos em um dos lugares do planeta com as tecnologias mais avançadas de anticolonialismo. O empreendimento colonial é baseado em extermínio, morte e miséria. Em meio a um cenário tão lúgubre, ainda fomos capazes de criar alegria, música e dança. Enfim, vida. Não raro ouvimos nossos compatriotas maldizerem as festas de rua, em especial o Carnaval. Este seria um “desperdício de recursos”, “uma farra inconsequente” ou a confirmação de que nós, enquanto povo, só serviríamos para o lazer inconsequente, sem compromisso com a moral sisuda do trabalho. Nos distanciamos, é certo, da ética protestante que funda o capitalismo como o conhecemos. Que bom.
Carnaval, essa festa rueira que para um país de 200 milhões de habitantes por quatro dias – um enorme acinte. Afinal, como ficam a produtividade, o PIB, os barões que nos assaltam diariamente? Sempre haverá o lacaio que defenderá sua condição de servidão mais ferozmente que seu próprio senhor. “Aqui só se pensa em feriados”, dirá, para o aplauso de quem o segura na coleira. Ocorre que não existe dominação mais plena do que aquela em que a classe dominante convence os dominados de que sua condição, em realidade, é melhor do que seria sem a tutela patriarcal a qual se encontram submetidos. Essa, sim, é a verdadeira chaga que devemos combater.
As festas de rua, das quais a mais apoteótica é o carnaval, são justamente uma das ferramentas mais potentes de combate ao julgo de 500 anos em que nos encontramos. Aqui nos ensinam Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino que as ruas carregam enorme potência de transformação – e, de fato, foram o que permitiram alguma possibilidade de sociedade em meio ao horror. O espaço urbano, de convivência e encontro, é o campo de batalha em que se desenrola o duelo que definirá se seguiremos sob julgo ou se romperemos as correntes. A encruzilhada é o caminho, assim Exu ensina. Não à toa, é nesse ambiente que desfilamos, cantamos, e seguimos em marcha entoando nossas canções, não de conformismo, mas de guerra.
Aqui talvez o leitor tenha dificuldade de vislumbrar tal estratégia bélica tão insidiosa. Pois, para citar um exemplo, temos o enredo da Vai-Vai desse ano, a crítica mais contundente ao braço armado do estado que serve para exterminar seus concidadãos. O Carnaval é político e engajado. A festa coexiste com a luta e, quiçá, essa seja justamente a forma mais sofisticada de peleja já elaborada pela humanidade. Aqui empresto as palavras de Nietzsche: “eu só poderia crer em um Deus que soubesse dançar”. Na mitologia afro-brasileira, impregnada no Carnaval, as deidades dançam. E o fazem ao mesmo tempo em que nos amparam, consolam e energizam. A irreverência, alegria e gingado é o que nos difere da crueldade indiferente e burocrática do capitalismo.
Não é por acaso que a capoeira, nossa arte marcial, é também uma dança. Dança de Guerra, como chamou o grande Mestre Jair Moura. Nossas divindades nos fizeram à sua imagem e semelhança: assim como elas, nós dançamos. Aí reside nosso trunfo: como disse antes, não podemos esperar sucesso com as armas que o inimigo nos apresenta, há que ignorar tal manobra diversionista. Nossos ancestrais entenderam isso, e nos muniram com a mais potente das armas, as que melhor confundem nossos oponentes. Outra lógica de mundo, mais humanista, fraterna e justa encontra-se bem diante de nós. Os incautos chamarão de folia, mas o mais correto é treinamento. “O dia em que o morro descer e não for carnaval ninguém vai ficar pra assistir o desfile final”.
Na nossa região, não se goza o Carnaval da mesma maneira como Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro ou mesmo São Paulo. Não é obra do acaso: a presença negra nessas regiões se faz sentir mais que nos estados do Paraná e Santa Catarina. Estes, ainda presos na ideia equivocada de imitar a Europa, aqueles mais avançados em explorar a preciosa vocação mestiça do país. Como vaticinou o grande sambista Wilson das Neves “O dia em que o morro descer e não for Carnaval ninguém vai ficar pra assistir o desfile final”.

Pedro Rodrigues Sousa da Cruz
Professor e pesquisador do IFPR União da Vitória, graduado em Biologia e doutor em Genética Humana pela UNICAMP, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas/IFPR, capoeirista da Casa Avuô e integrante do grupo de percussão Maracá.

Clique para comentar
Sair da versão mobile