MEMORIA E DISCURSO

O discurso teológico e a teologia do domínio na extrema direita contemporâneo (I)

 

No último dia 25 de fevereiro de 2024, a extrema direita, voltou a ocupar as ruas. Saiu da sua caixa de pandora golpista do 08 de janeiro de 2023. De tempos em tempos, a extrema direita antidemocrática e anticivilizatória, mobiliza sua base político-eleitoral, para construir uma espécie de roteiro pré-eleitoral (é importante não esquecer que em outubro temos eleição para Prefeitos e Vereadores em todo o Brasil).

Desta vez, o roteiro discursivo estava mais amplo. Os leitores que acompanham esta coluna, lembram das análises que fizemos sobre o Bolsonarismo e o Cristofascismo no passado recente. Certamente, a extrema direita antidemocrática, que se expressa e se manifesta no Bolsonarismo com conceitos e categorias que pertencem a teologia fundamentalista, embasam sua estrutura em uma dupla vertente: por um lado, de extrema perversidade ao manipular trechos da bíblia, e por outro, o discurso existe, porque tem audiência. É justamente, para esta audiência cativa da extrema direita antidemocrática e golpista que Michelle Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia proferiram seus discursos em tom apocalíptico e eleitoreiro, ao pôr ênfase em conceitos como “o exército de Deus”; “luta contra o mal”, estes dois conceitos, se enquadram e dão vida a aquilo que chamamos de “teologia do poder” e a “teologia do domínio”, é justamente, sobre esses conceitos e seu desenvolvimento que nos debruçaremos neste e nos próximos artigos.
Voltando um pouco no tempo, no ano 2021, o professor Robson Sávio Reis Souza, pós-doutor em Direitos Humanos, doutor em Ciências Sociais, coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas, fazia uma observação importante em sua análise, ao afirmar: “A RELIGIÃO é o principal elemento de constituição dessa base social da extrema-direita global. Mas, são o MILITARISMO e o ULTRALIBERALISMO que caracterizam o domínio do poder estatal (da extrema-direita) em níveis nacionais, com intentos globais. Não por coincidência, governos teocráticos, militares e ultraliberais são formas distintas de autoritarismos (…) A extrema-direita global desfruta de símbolos do cristianismo para formar uma “milícia religiosa”, a reeditar a guerra do bem contra o mal. No caso, o bem seria tudo aquilo associado ao pensamento conservador (religião, família tradicional, propriedade privada, meritocracia, precedência do individual sobre o público). O mal, por sua vez, está associado à modernidade, ciência, feminismo, esquerdismo, luta de classe, estado social, etc… (…) Portanto, a base social que agrega essa massa difusa precisa de um discurso MORALISTA, CRISTÃO, CONSERVADOR para manter mobilizada uma legião religiosa que tem em líderes carismáticos radicais, como Bolsonaro, Putin e outros, e para defender radicalmente uma visão salvacionista e redentora do mundo. Uma recristianização global, que é a base da Teologia do Domínio presente nos discursos desses grupos religiosos (a crença segundo a qual a religião deve dominar o poder político, a cultura, a educação, as artes, os comportamentos…)”.
E nesse quadro que se manifesta a teologia do domínio como elemento estruturante do discurso teológico no bolsonarismo. É justamente nesse motor da história contemporânea que Michelle Bolsonaro e Silas Malafaia começam a lançar na arena política pré-eleitoral na Paulista no dia 25 de fevereiro. Neste sentido como mostram os professores, Mayra Goulart, do Departamento de Ciência Política da UFRJ e, Paulo Gracino, do Departamento de Sociologia da UnB, os pesquisadores ressaltam que: “A Teologia do Domínio, vertente teológica que teve origem nos EUA, prega entre outras coisas, a submissão das mais diversas esferas sociais à lei Bíblica. Embora sua recepção no Brasil conte com muitos atravessamentos, existe um núcleo duro que podemos identificar, sendo umas das doutrinas mais difundidas aqui a do movimento 7M, ou o Mandato dos sete montes, que afirma que existem sete áreas da sociedade que são cruciais para a influência dos evangélicos e condição para segunda vinda de Cristo: família, religião, educação, mídia, entretenimento, negócios e governo. Esta interpretação teológica oriunda da década de 1970, com raízes no século XIX, veio ganhando força nos últimos anos, especialmente após a coletânea de livros Left Behind (Deixados Para Trás) de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins”.
Ainda para, Goulart e Gracino: “Tanto Malafaia quanto Michele apelam para um antagonismo absoluto, bem aos moldes da Teologia do Domínio, operando uma simplificação de uma realidade complexa, criando um “nós” (uma macroidentidade cristã-moral) em oposição a um “eles”, vistos como demiurgos da desestabilização social, depositários das mazelas e dos medos que afligem boa parte da sociedade em momentos de convulsão social. Nesse caso, o ativismo LGBTQIA+, a ditadura do STF, os “petralhas”, as “feminazis” ou, simplesmente, o “mal”, o “capeta”. Ainda é interessante observar como o discurso do pastor Silas Malafaia tem um duplo papel funcional, que, ao mesmo tempo que coloca o pastor em um lugar privilegiado na disputa pela arena religiosa brasileira, amplifica seu discurso para além da população evangélica (…) A extrema direita se vale de dicotomias claras, de fácil assimilação, tal proposta elimina o adversário do jogo político colocando em seu lugar a metáfora do amigo (todo mundo que está do meu lado) X inimigo (quem não está do meu lado e pode ser eliminado, inclusive fisicamente). Ainda que os evangélicos tenham sido minoria no ato pró-bolsonaro, é importante lembrar que é deste grupo, especialmente, de suas principais lideranças como Silas Malafaia – eminência parda do bolsonarismo – que emanam os principais termos e símbolos da gramática política da extrema direita brasileira. Em resumo, são os evangélicos e suas lideranças, responsáveis pelas palavras-chave da narrativa do bem contra o mal do bolsonarismo, muito presentes no discurso de Michelle”.
Finalmente, Goulart e Gracino, ressaltam que: “Os evangélicos não são alienados e não são irracionais, eles têm método e estratégia, souberam conduzir o jogo político aqui e nos EUA, não importa se a narrativa que organizou a ação é de fundo bíblico. A ideia de que sejam alienados, fala mais sobre o lugar dos analistas, que teimam em separar a razão da emoção, especialmente, em termos de ação política, não percebendo que tal pensamento leva o campo democrático para um terreno pantanoso difícil de lutar, pois pode isolar parte importante do eleitorado lulista, ou seja, as classes populares (…) O discurso moral proferido por Malafaia e replicado por um sem-número de outras lideranças evangélicas, apresenta-se como um forte amálgama capaz de conectar ansiedades e medos pessoais, tributários de um momento histórico marcado por fortes transformações e emergência de pluralidades sociais, ao discurso moral de fundo religioso e a uma narrativa de longa duração. O mal não está longe, não vem só de fora nem do estrangeiro, ao contrário, senta-se ao seu lado na escola, almoça com você no refeitório do trabalho, enfim, tal operação é capaz de transformar a indeterminação gerada pelo contínuo processo de complexificação social em possibilidades determinadas e determináveis, produzindo interpretações do mundo através de generalizações simbólicas”.
O evento político/eleitoral/religioso na Paulista, no dia 25 de fevereiro, traça um novo caminho simbólico para a política brasileira contemporânea. Se o bolsonarismo se alimentava espiritualmente, antes, durante e após a pandemia nas águas do “Cristofascismo”, agora, deu um salto quantitativo gigantesco, para avançar sua cruzada de radicalismo e extremismo. Esta realidade, será perceptível nos atos e discursos políticos de candidatos a prefeitos e vereadores da extrema direita nas contendas municipais.
Faço, finalmente, três observações importantes: Em primeiro lugar, quando Michelle Bolsonaro e Silas Malafaia lançam o desafio de formar e fortalecer um “exército de deus” para lutar contra o mal, este mal, no imaginário bolsonarista está representado nas ideias democráticas e progressistas da esquerda e da centro direita, que defendem políticas públicas e sociais, direitos humanos e o Estado Laico. Em segundo lugar, as lideranças políticas democráticas, precisam deixar de lado seus egos e criar novamente uma frente ampla para fortalecer e defender a democracia agora nos municípios. Pelo contrário, em terceiro lugar, estaremos preparando o terreno caótico, ardiloso e com condimento religioso fundamentalista para as eleições gerais de 2026, se a extrema direita se fortalecer nas próximas eleições municipais.
Fica o alerta para a classe política democrática, para realizar uma leitura crítica e estratégica da histórica política em que estamos transitando. É urgente que as lideranças do campo democrático realizem uma leitura estratégica e conjuntural, e assim, observem que estamos adentrando em um período obscuro da própria forma política. A extrema direita bolsonarista ao propor uma narrativa de “guerra” com “as armas da teologia fundamentalista”, nos levará a um perigoso caminho de extremismo político e religioso. Ainda, há tempo para as lideranças democráticas organizarem suas bases eleitorais e buscar conter as propostas anticivilizatorias que traz consigo a extrema direita antidemocrática. Até a próxima!
*As referências e citações contido neste artigo encontra-se na página: https://www.ihu.unisinos.br/

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