Naquela vã ilusão de que tudo vai durar para sempre, em um piscar de olhos tudo mudou, tudo passou, foi como uma brisa que tocou em nossos cabelos e fez tudo mudar.
E por um momento de distração, a beleza das flores foi morta, o cantar dos pássaros foi silenciado, a morte pairou no ar.
Ao meio dia o céu estava escuro, e o sol deu lugar para as nuvens carregadas de chuvas volumosas e impiedosas.
Fomos impedidos de voltar para as nossas casas, e lá ficaram nossas coisas, nossos bens, nossas vidas, nossos animais, não se trata apenas de estarmos bem e com saúde, mas é também sobre isso. Mas, foram anos de luta para conquistarmos o que tínhamos, alguns mais, outros menos, mas tínhamos orgulho das nossas conquistas, e hoje, elas não existem mais.
Estão enlameadas, encharcadas por nossas lágrimas, e não mais existem.
Nossas fotos penduradas, nossas lembranças, nossas preces de mãos dadas em torno da mesa não mais existem.
E como será amanhã, depois, e no futuro? Não sabemos.
Sinto que o recomeço é todos os dias, e há uma força invisível, que está nos acompanhando. Por muitas vezes fecho meus olhos, por alguns instantes consigo dormir e esquecer, mas logo a verdade bate em minha mente e me faz acordar, e me faz reagir.
À noite, saio um pouco do abrigo, estamos juntos, em um ginásio. A água suja, traz o cheiro ruim de um passado que vamos deixar para trás. Por uma distração, fecho os olhos e consigo ver as ruas, as crianças correndo, bola rolando, risos, vizinhos tomando chimarrão na calçada, as cores das casas, o cheiro do bolo, o café recém passado, lágrimas escorrem. Enxugo-as, preciso ser forte.
Meus animais, minha plantação, o sustento da minha família, tudo se foi. Questão de segundos, incríveis segundos.
Olho para o céu, algumas gotas caem em meu rosto confundindo-se com minhas lágrimas. Mais uma madrugada chuvosa.
Não há como explicar, não há como entender, apenas seguir.
Seguir unido, seguir orando, seguir firme no propósito de recomeçar.
Coloco a mão no bolso, abro a foto que consegui trazer comigo. Está molhada, minha família, suspiro.
Não tenho muita ideia de onde estão todos, meus pais, tios, e minha pequena Isabela. Nós éramos felizes, ou talvez ainda seremos novamente. Não sei, apenas peço a Deus uma segunda chance, é possível que eu seja atendido? E se Deus, por um segundo, me permitir acordar desse pesadelo?
Estamos todos sensíveis, estamos perdidos, com medo, e precisando muito mais dos outros do que antes.
A verdade, é que nunca precisamos tanto uns dos outros como agora.
Na água, roupas vão para longe, nos escombros, o que sobrou de uma casa, que antes tinha vida, que antes tinha música, tinha cor e cheiro. Hoje são escombros, sem vida, sem esperança.
Há épocas em que é difícil acreditar em um recomeço, e justamente nesses momentos sinto uma força aqui dentro que me enche o peito e faz eu querer continuar mesmo tendo apenas uma foto molhada em minhas mãos.
A manhã desponta na curva dos pampas, de longe avisto um comboio, a ajuda está a caminho e, com ela, posso ver vários anjos, do Norte, nordeste, sudeste, centro-oeste, aqui do sul. Mãos amigas que nos auxiliam, que nos alimentam e que matam a nossa sede, nos acolhem, que nos abraçam, que nos adotam como irmãos. E hoje, ninguém solta a mão de ninguém, porque há uma única certeza, naquela curva dos pampas, onde desponta o comboio com comida e mantimentos, a esperança se faz presente e renasce.