COISAS DA BOLA

A vergonha de 16 de julho – Brasil em prantos – decisão da Copa do Mundo de 1950

Em razão da segunda guerra mundial não houve mundiais nos anos de 1942 e 1946. Segundo relato de jornalistas e historiadores, o Brasil já tinha largo interesse em sediar o torneio. Prova disso foi que não fez parte do boicote dos países sul-americanos ao mundial de 1938 na França, sendo o único país a participar. Um outro fator favorável ao Brasil foi que Jules Rimet gostava do Rio de Janeiro, achava lindo. Inclusive quando esteve no nosso país, os cartolas brasileiros levaram o presidente da Fifa para uma ZBM (Zona do baixo meretrício). Ele ficou encantado, escreveram.
Não menos importante foi o fato de que o presidente Eurico Gaspar Dutra deu seu apoio e o país ajudou a construir o maior estádio de futebol do mundo, à época, chamado de Mendes de Moraes, pois, acreditava o Presidente, que o futebol era uma extensão da educação. De fato, o Brasil tinha feito quase o necessário para ganhar a Copa de 50. Conseguiu ser sede e construiu o maior Estádio do mundo para servir de palco à sagração do seu futebol.
No desenrolar da Copa, já no quadrangular final, tendo goleado a Suécia e Espanha por 6 a 1 e 7 a 1, respectivamente, antes mesmo da grande contenda final, o clima do “já ganhou” tinha tomado conta do país. O Uruguai vinha de um empate com a Suécia e um triunfo sobre a Espanha no apagar da vela. Todos tinham certeza que o Brasil sairia campeão no Mendes de Moraes. O escrete brasileiro era o favorito, tinha o melhor elenco e peleava por uma simples igualdade no escore. O clima de euforia culminou com a péssima preparação no pré-jogo.

Centenas de milhares de flâmulas foram feitas com os dizeres: Brasil campeão do mundo. Foram impressos em tipografias vários milhões de cartões-postais com a chapa do escrete Brasileiro contendo os dizeres: Brasil campeão do mundo. Estúdios fotográficos produziram milhares de cópias de uma pose do selecionado brasileiro com letras garrafais em preto: Brasil campeão do mundo. O prefeito do Distrito Federal do Rio de Janeiro, Mendes de Moraes, mandou preparar um carnaval nunca visto, o maior que se veria no mundo. Em cima das marquises foram colocados milhares de sacos de confetes para serem jogados, logo que o apitador desse o trilo final. Uma rampa de ferro fora construída para ser colocada sobre o fosso minutos antes do prélio findar, por onde deveriam passar os jipes das sociedades carnavalescas que fariam a volta do campo. Contrataram-se bandas de clarins, baterias de Escolas de Samba. A festa estava preparada e seria monstruosa. Só, que esqueceram de passar um telegrama para avisar o Uruguai.

No sábado de 15 de julho, no final da tarde, já boca da noite, os craques brasileiros, despreocupados assistiam um voleibol de moças, quando veio uma ordem para rumarem em direção ao salão nobre do Vasco. É, que se faziam presentes no recinto algumas futuras autoridades, candidatos a vereador, a deputado, a senador, para cumprimentar os jogadores, que no dia seguinte seriam campeões mundiais. Mal se podia respirar naquela peça, e, durante horas, em pé, os jogadores do escrete, ouviram discursos inflamados. Assim, naquela véspera do cotejo final, os craques já recebiam tratamento e se sentiam campeões do mundo. Atendia-se a solicitação de todos, muitos autógrafos, dos “campeões”, foram assinados nos cartões postais, nas fotografias, nas flâmulas, até em chapéus de futuras e outras já autoridades.

No dia do enfrentamento, a mando do treinador todos os craques foram obrigados a participar de uma missa pela manhã. Rezaram em pé por duas horas. Após a missa, os jogadores brasileiros foram levados da concentração para almoçar no Estádio de São Januário, onde não puderam descansar direito, indo em seguida para os vestiários do Estádio Mendes de Moraes, ficando lá fechados, por horas, numa tensão terrível e sobre-humana.

Na entrada dos escretes às quatro linhas, notou-se que a bandeira brasileira estava de ponta-cabeça e assim mesmo foi hasteada. Era um mau sinal. Na hora dos capitães escolherem os lados do campo, o nosso capitão perdeu pela primeira vez no toss e o Brasil teve que iniciar uma disputa no lado oposto a que estava acostumado quando deixava o arqueiro contrário tomando o sol bem no focinho. Outro mau presságio.

Aquele mar de gente ouvindo o discurso do prefeito Mendes de Moraes, afirmando nos 254 alto-falantes que era hora de mostrarmos para o mundo que não éramos bugres e venceríamos como verdadeiros cavalheiros.

  

Com o escrete perfilado para cantar o hino nacional, alguns fazendo “máscara” erguendo os calções para deixar mais a mostra as pernas troncudas e brilhantes pelo óleo de massagem, eles ficaram impassíveis quando ouviam os seus nomes nos autofalantes, principalmente quando foi dada a escalação do ponteiro esquerdo Chico e ouviu-se novamente uma enorme vaia, que mesmo sendo um jogador voluntarioso que levava tudo no peito e na raça, era meio duro de bola. E, assim, aconteceu o maior pesadelo do escrete brasileiro em uma Copa do Mundo.

Diante do boato de que os uruguaios já se sentiam perdidos, sujeitos a levar uma sacolada, e por qualquer mínimo entrevero, agarrariam um mínimo detalhe para justificarem um possível abandono do campo de jogo, o apitador fora conversado. Devido ao temperamento e indisciplina dos contrários, com medo de tal situação, pediu-se aos jogadores do escrete deste país varonil, para jogarem somente na bola, com lealdade e sem fuzarca, porque não tinha como perder, deveria ser de um mundaréu de tentos o triunfo. Além de tudo a festa não poderia ser maculada, pois não se tinha visto até ali um incidente, sendo este mundial o mais limpo que jamais se disputara. O Brasil construíra o maior Estádio do mundo, e que ainda não totalmente pronto, encheu. Tudo fora feito para ser campeão mundial.

Uma pergunta não respondida até hoje é de estremecer o escritor e o leitor dessa crônica: e se desse cagada contar com ovo antes? O que eles estavam fazendo não devia ser feito por nenhum clube na véspera de decisão de um certame. Afinal! Mesmo o “onze” sendo muito bom e estar jogando o fino e mais belo futebol visto até então, um jogo é um jogo, e num jogo, é onde tudo pode acontecer. O mistério somente seria desvendado, após o último apito do referee. Para um lado ou para outro.

Favoritíssimo e peleando por um empate para abiscoitar o título, embora melhor em campo, na primeira metade regulamentar o onze brasileiro não conseguiu mexer no escore. Suspiros longos. Nada da esperada goleada. Até que, logo na largada do período derradeiro, exatamente aos 1 minuto e 21 segundos, o polivalente dianteiro Friaça, estufava as redes. Ouvia-se os 220 mil brasileiros espremidos, empoleirados e se ajeitando de todo tipo gritarem, mais um, mais um, mais um. O Estádio Mendes de Moraes quase se desintegrou. Pessoas desconhecidas se abraçavam. Enamorados, noivos, amasiados, casados na igreja, mesmo à beira de uma separação, se amavam a olhos vistos. Inimigos pegavam nas mãos uns dos outros. A multidão pulava enlouquecida. Tremiam as estruturas do Mendes de Moraes. Acharam que a esperada goleada começara. E os jogadores brasileiros se lançaram para o mais um, pedido por aquele mundaréu de torcedores. O almejado caneco estava vindo, de fato.

Daí em diante o inferno começou a rondar o escrete brasileiro. Os uruguaios comandados por El Gran Capitan, Obdúlio Varela, dominador e cheio de autoridade, que primeiro empurrou e peitou o seu extrema-direita, Ghiggia, para que deixasse de se acovardar. Depois agarrou pelo pescoço o asa-médio-esquerdo brasileiro, Bigode, chamando-o nas puas, porque ele parecia uma fera quando dava o bote de cobra com os dois pés e anulava o extrema-direita Ghiggia. O juiz, como dito, já estava conversado, e sorrindo separou Obdúlio Varela do asa-médio Bigode. Longe dele, estava de expulsar os dois. Acabar com a festa esperada, nunca. Quem imaginaria que aquele ato mudaria o cenário final.

O asa médio-esquerdo, Bigode, seguindo a orientação dada antes do cotejo não podia reagir e nem dar os seus “carrinhos”. Não reagiu, não carrinhou, não marcou duro. Com o fuço ardendo de vergonha, louco para dar um cacete no ponteiro, conteve-se e não mais o dominou. Começou a fazer um “cerca-lorenço”, e recuando, recuando, não deu mais o bote de cobra. Deixou o ponteiro Ghiggia matar a pelota na calma e quase da linha de fundo efetuar um centro. O centro teve como destino certo ao meia-armador, Schiaffino, aos 20 minutos e 13 segundos, que solteiro dentro da pequena área, não perdoou, pegou o balão à meia altura, desviou de leve. O guardião Barbosa reagiu tarde, se pinchou, e quando estendeu as mãos, a peca já dormia no fundo do seu barbante, 1 a 1. Os uruguaios correram em volta do gramado dano socos ao vento.

Um silêncio frio, como um balde de gelo, jamais visto ou sentido se derramou sobre o Estádio Mendes de Moraes. Um silêncio de mais de 200.000 bocas. Podia-se ouvir o voo de uma mosca.

Lá dentro do relvado, como um pesadelo, os jogadores brasileiros sentiram o peso esmagador daquele silêncio, quase mortal. Com o 1 a 1, ainda eram campeões mundiais. Mas, para o brasileiro ao redor do palco verde, o título teria que ser com um vareio de bola e um balaio de tentos. Esperavam isso. Teria tempo ainda? Mas, já tinham peleado por quase 21 minutos na etapa derradeira. Não dava mais tempo para encher os uruguaios de golos. Era uma vergonha ser campeão assim. Haveria desgraça maior?

Sim! Havia desgraça maior, enorme desgraça, para não ser esquecida. Ela veio aos 33 minutos e 30 segundos, quando aquilo que ninguém ousou imaginar, se deu, de verdade.

Em lance idêntico ao primeiro tento uruguaio, o extrema Ghiggia avançava pela direita. Bigode só no cerco, sem bote. O balão fora esticado no seu costado, numa jogada desenhada como na primeira derrubada da cidadela brasileira. Esperando o centro, o arqueiro Barbosa deu um passo à frente. Se o ponteiro cruzasse ele cataria lá no alto. Quase sem ângulo, o ponteiro em vez de cruzar, arrematou no contrapé do guardião Barbosa, pegando-o de calças curtas. Ouviu-se o “chuá” da sua rede. Gol da celeste olímpica. Mais de 220.000 pessoas emudecem de vez, num silêncio de tumba. O silêncio ensurdecedor, que agora poderia até matar, acaba psicologicamente com o quadro brasileiro. Um narrador brasileiro amoleceu o garrão e desmaiou na cabine.

Obdúlio Varela, puxando a camisa ensopada como querendo mostrar as cores da sua pátria, olhando para a massa, gritava: – Es la Celeste! Es la Celeste! Quando o escrete do Brasil sai da letargia, apoiado pelo mar de torcedores, pressionou, e não achou, o agora “unicozinho” tempo de empate. Não conseguiu mais esticar as malhas uruguaias. O título já tinha viajado. Os uruguaios, agora mais que nunca, se atiravam de corpo e mais alma, comandados pelo mulato El Gran Capitan, Obdúlio Varela, dispostos a finar pela vantagem que tinham. O escrete uruguaio virou em dez beques e, bola para o mato que é cotejo de caneco. Quando o apitador fez funcionar o seu referee pela última vez naquele prélio, poucos foram os que não choraram.

O Uruguai levantou o bicampeonato mundial. Antes de se entregar à tristeza, os mais de 200 mil torcedores bateram palmas para o escrete uruguaio. Não tinham um “que” para contestar o triunfo limpo. Pós isso, O Estádio Mendes de Moraes se transformou no maior velório da história. Aos poucos, todos indo embora, a passos de enterro.

Aqueles que não choravam, com o queixo no peito, olhando para o chão, esbravejavam. Como sempre, procurou-se um culpado. Uns acusavam o treinador. Teorias da conspiração foram criadas. Sobrou para dois pretos do selecionado brasileiro. Foi o Bigode! Foi o Barbosa! Os bodes expiatórios. Tinha no que dar, segundo aos racistas que apareciam aos montes. Escalar mais mulatos e pretos do que brancos, era só no que daria. Escaparam da pecha os craques Zizinho, Bauer e Jair da Rosa Pinto. Outros, como justificativa falavam que não tínhamos El Gran Capitão. Teríamos que ter um Obdúlio Varela, não importando que ele fosse mulato e de cabelo enrolado.

OBS: O Estádio Mendes de Moraes, alcunhado de Maracanã, no ano de 1966 passou a se chamar Mário Filho, em uma homenagem ao considerado maior jornalista esportivo, que muito esforço fez, para que o referido Estádio fosse construído do jeito que foi, e no conhecido Bairro Maracanã.

Jair da Silva – Craque Kiko – Escritor da periferia.

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