Atalaia de Acaiene

Estamos ficando doidos?

Venho esses tempos percebendo como a disfuncionalidade se tornou o padrão da nossa sociedade. Explico. Procure se lembrar de quantas pessoas conhece que estão tratando algum transtorno como ansiedade generalizada, burnout ou depressão. Certamente conseguiu lembrar de algumas, certo? E quantas, em tratamento ou não, apresentam as mais diversas dependências, seja por álcool ou outras drogas, pornografia, jogos, compras e/ou uso excessivo de celular? Pode bem ser que você mesmo se identifique com alguns desses padrões. Imagine, agora, se considerarmos quantos de nós enfrentamos disfunções subclínicas, como síndrome do impostor (transtorno em que a pessoa acometida se sente incapaz, duvida das próprias habilidades e atribui suas conquistas à sorte), senso de desconexão com as outras pessoas, cansaço crônico, problemas de libido? Se você não se identifica com nada descrito acima, parabéns, você talvez seja a última pessoa plena na face da Terra.
É claro que tais moléstias não são em si novas, nos acompanham há muito tempo em variadas formas. Aliás, em alguns casos há predisposição genética, e seria um grande erro atribuir prevalência apenas às condições de vida. E há algo de extremamente positivo no fenômeno de agora enxergarmos tantos casos ao nosso redor: há, enfim, maior conscientização, compreensão, busca por tratamento e diversas abordagens terapêuticas. Para exemplificar de uma forma anedótica, é comum ler em perfis de aplicativos de namoro o atributo “terapia em dia” como selo de qualidade. Em alguns círculos sociais, fazer psicoterapia é visto como imperativo moral, um dever cívico e uma condição básica para o convívio em sociedade. Se talvez aqui a ideia seja um pouco exagerada, é um grande avanço em relação à noção, cada vez mais arcaica, que terapia é coisa de quem perdeu a sanidade – de “loucos”. De fato, já fiz psicoterapia e acredito que todos devam passar pela experiência, ao menos de tempos em tempos, da mesma forma como fazemos checkup, exames de rotina e vamos ao dentista para evitar que algum problema mais grave se instale. Porque, afinal, a saúde mental é tão importante quanto à física – e está intimamente vinculada a esta.
Faz parte ainda do mesmo fenômeno a busca por outras formas de autoconhecimento e superação de traumas, sejam formas sérias como a já citada psicanálise, bem como Thai Chi, arteterapia ou filosofia. Sim, a filosofia, tanto ocidental quanto oriental, carrega incontáveis reflexões sobre o fardo da existência terrena e como lidar com ele. Ilustro com algo muito concreto – existe uma febre sobre o estoicismo, a ponto de estampar a capa da revista Superinteressante recentemente. E há, claro, as formas mais duvidosas de buscar maior consciência sobre si, como constelação familiar, eneagrama, programação neurolinguística e as “técnicas” de uma infinidade de coachs que enriquecem à base das inseguranças e vulnerabilidades alheias. No meio do caminho há teorias sérias que foram sendo desfiguradas, como o sistema MBTI e a pirâmide de Maslow.
Um dos maiores escritores de todos os tempos, Machado de Assis, elabora uma tese em 1882 a respeito de sanidade mental no primoroso livro intitulado “O Alienista”. Não vou estragar a leitura de quem ainda não se deu a esse deleite, mas faço conjectura correlata: pode ser que o que convencionamos chamar de “disfunção” ou “transtorno” bem sejam a condição padrão do ser humano, dada sua frequência. De perto ninguém é normal. Mas me assombra uma outra hipótese do que essa acima, talvez estejamos, sim, diante de uma pandemia global de desregulação de um suposto equilíbrio psicoemocional. Corroboram para essa visão mais pessimista o fato de que a ansiedade, por exemplo, não se distribui de maneira homogênea nem geograficamente, nem entre classes socioeconômicas, nem entre gêneros e sequer entre diferentes faixas etárias.
Em um artigo de 2021 publicado no periódico científico “Epidemiology and Psychiatric Sciences”, Yang e colegas analisaram dados de 204 países e identificaram um aumento geral na incidência de ansiedade no período entre 1990 e 20191, e identificaram mulheres, adolescentes e pessoas em condição de vulnerabilidade social como grupos de risco. Do ponto de vista regional, países do centro do sistema capitalista (Estados Unidos, Canadá, Europa ocidental e Austrália) possuem as taxas mais altas, talvez por maior abordagem midiática e acesso a diagnóstico. Chama atenção, porém, que países da periferia do sistema, como os da América Latina, tenham taxas próximas aos países do centro. O Brasil, por exemplo, é a nação mais ansiosa do mundo, com taxas altíssimas de incidência. Há, portanto, mais fatores a serem considerados que apenas informação, acesso aos serviços de saúde e métodos mais efetivos de identificação. Existe uma dimensão social que não está sendo devidamente considerada.
É possível que exista aí uma relação com uma sociedade voltada para o individualismo extremo, em que a vaidade é incentivada por meio das redes sociais, em que os laços de confiança são deteriorados em favor da competição constante, em que os padrões de beleza e sucesso são cada vez mais inalcançáveis, a noção de reconhecimento se dê pelo consumo e não por integração social, a cobrança por produtividade é desumana e em que a renda atinge níveis estratosféricos de concentração. Quem sabe estejamos errando ao buscar apenas saídas individuais (terapia, meditação, etc) para um problema coletivo. Quiçá o tratamento para esse mal passa por nos reconectarmos, buscarmos reconstruir relações sociais que foram se perdendo. Acredito que não exista nada mais subversivo que nos aproximarmos enquanto iguais. Pode ser em associações de bairro, cooperativas, clubes de afinidade, sindicatos, grupo musical, grêmio e outras organizações. E renunciarmos ao ímpeto de superar os demais, mas incluir nosso próximo, estar junto aos nossos semelhantes sem a busca por protagonismo individual, mas compreendendo que a felicidade apenas é real quando compartilhada.

  1. Yang, X., Fang, Y., Chen, H., Zhang, T., Yin, X., Man, J., Yang, L., & Lu, M. (2021). Global, regional and national burden of anxiety disorders from 1990 to 2019: results from the Global Burden of Disease Study 2019. Epidemiology and Psychiatric Sciences, 30. https://doi.org/10.1017/s2045796021000275

Pedro Rodrigues Sousa da Cruz
Professor e pesquisador do IFPR União da Vitória, graduado em Biologia e doutor em Genética Humana pela UNICAMP, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas/IFPR, capoeirista da Casa Avuô e integrante do grupo de percussão Maracá.

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