REMINISCÊNCIAS

A viagem

Os fatos a seguir relatados ocorreram por volta da década de 1970, tempo ainda quando estava trabalhando na R.F.F.S.A. lotado no Departamento de Material em Curitiba. Semanalmente, às sextas-feiras à noite, embarcava no ônibus das 19:00 horas da empresa Estrela Azul em Curitiba para União da Vitória e retornava no das 07:00 horas nas segundas-feiras. Por mais de ano essa foi a cansativa rotina até que finalmente fui transferido para trabalhar no já extinto Almoxarifado da Rede em Porto União/União da Vitória.
A rotina que era do conhecimento dos funcionários da empresa Estrela Azul lotados na Agência de União da Vitória, motoristas e cobradores, me concedia privilégios mesmo sem reinvindicações, porquanto todos com o passar do tempo desenvolvemos sentimento de amizade que ainda permanece com os poucos remanescentes daqueles dias venturosos.
Conhecedora das minhas preferências, a responsável pela venda dos bilhetes de passagens da empresa, reservava a poltrona 05 (segunda fileira de poltronas, no corredor do veículo) nas segundas-feiras sem necessidade de solicitação, apenas porque tinha a certeza que iria viajar.
Foi numa segunda-feira do mês de junho, frio e chuvoso, retornando a Curitiba que tive experiência inusitada, ensinamento que guardo nas lembranças memoriais e serviram para me situar no devido lugar que devo ocupar nesse mundo de humanos dos quais nada de melhor, de maior, de privilegiado, devo pretender. Sou apenas mais um, igual a todos, nem mais, nem menos.

Fustigado pela garoa fina e fria que insistia em acontecer nos invernos em União da Vitória, manhã fria, desguarnecido de proteção da chuva, sigo andando ligeiro para a Rodoviária para, novamente, embarcar no ônibus e retornar a Curitiba.
Como sempre me dirijo ao guichê da empresa, adquiro a passagem que já estava expedida, me dirijo ao veículo, certo que a poltrona 05 estava reservada, desnecessário conferir o bilhete adquirido. Adentro ao veículo, a poltrona 06 ocupada por homem moço que imediatamente constatei que era muito reservado, nenhuma importância me concedeu, fato surpreendente.
Acomodo-me na poltrona depois de ajeitar a bagagem que trazia no maleiro correspondente. Sentado, cumprimento o companheiro – “bom dia!” Mal ouço a resposta balbuciada, nada mais.
Os demais passageiros se colocam nos lugares próprios, dada a partida percorre o veículo vias rumo ao destino; partindo da rodoviária situada na Praça Getúlio Vargas (atual Alvir Riesemberg), segue à rua Ipiranga, alcança rapidamente a Avenida Manoel Ribas, a Ponte “Nova”, e a rodovia macadamizada com destino a Luzia, a Rondinha, a São Mateus, a Curitiba…
Trafega o veículo normalmente pilotado com maestria por piloto experiente, competente, com segurança em via macadamizada, molhada, decorrente das chuvas, característica regional de inverno.
O avanço dificultoso do veículo que trafega sacolejando, a lotação do ônibus, o ar viciado das janelas fechadas que impregna o ambiente corrobora com o desconforto da conhecida viagem.
… e o companheiro de viagem permanece quieto, impassível, impessoal, voltado a frente, sem tomar conhecimento de minha presença, impossível de observar a expressão facial.
Os quilômetros da rodovia vão sendo superados, a estrada continua mal conservada, o ônibus sacoleja, trepida, o ambiente cada vez mais poluído agora acrescido de fumaça de cigarros de muitos passageiros. É sofrível o ambiente, verdadeiro calvário. A meu lado permanece o companheiro de viagem impassível, impessoal, circunspecto em suas emoções, voltado para si sem se importar com os demais viajantes, em especial comigo. Uma rocha impenetrável.
Custosamente o veículo vence os obstáculos, avizinhasse a reta de São Mateus, ultrapassada a ponte do rio Potinga, esperança de chegar ao Ponto de Café em São Mateus, início da via asfaltada, certeza da melhoria das condições de viagem. E durante todo tempo o companheiro de viagem continua impassível, impessoal, ausente como se nada o afetasse, ignorando a tudo e a todos. Quem sabe se imagina melhor, superior a tudo e a todos, intocável.
Custosamente o ônibus chega a Rodoviária de São Mateus, chegado o momento do desembarque, todos com muita pressa, ansiosos, menos o companheiro. Observo que, estacionado o veículo no local de desembarque, saca da bolsa que estava debaixo do assento, pacote de leite, copo plástico e pão recheado. Vejo-o com os dentes, rasgar o canto do pacote de leite e com dificuldade transferir o líquido ao copo, saio do veículo. Vejo e descreio que tão impoluta personagem se digne a se sujeitar a ingerir leite de pacote trazido, pão recheado com provável queijo e mortadela, quando pode desembarcar e na Lanchonete da Rodoviária tomar uma boa xícara de bom e quente café com leite, acompanhada de saboroso pastel de carne. Faço juízo nada positivo da pessoa, justifico a impassividade, a impessoalidade que se porta, certamente se considera mais e melhor que todos, esse é meu juízo.
A viagem segue, a via asfaltada, ainda nova, incólume, o trânsito é rápido, vencidas rapidamente as distâncias logo é alcançada a cidade da Lapa, Contenda, Araucária, avizinha-se Curitiba e o companheiro de viagem ainda continua impessoal, impassível, silente observando o encosto do banco frontal sem se importar com qualquer coisa, atitude de quem está só, único no mundo.
Ultrapassado o bairro do Pinheirinho em Curitiba, alcançada a avenida Silva Jardim, próximo à esquina da rua 24 de Maio, o motorista previamente de acordo com passageiro, estaciona o veículo próximo ao meio fio do passeio público.
O companheiro de viagem que pouco se manifestou durante a viagem, tenta se levantar do assento dizendo: – “Com licença, desço aqui! ” Levanto do assento para dar passagem. Tateando, alcança a bolsa debaixo do banco, se apodera de bengala que ainda eu não havia visto, agradece e se despede – “Obrigado, boa viagem” – balizando-se com o instrumento alcança o passeio público. Observo que no passeio há pessoas aguardando-o.
Surpreso, indignado, extasiado constato que aquele que julguei impessoal, impassível, intangível, soberbo, mais e melhor que todos, não era mais do que um jovem cego que solitariamente viajava submisso a todas as dificuldades, as agruras que a cegueira impõe. Nada de impessoalidade, impassividade, inatingibilidade, apenas incompreensão, ignorância, ausência de empatia, de resiliência cercou o companheiro de viagem.
Afinal o ônibus estaciona na Rodoviária de Curitiba. Fim da viagem, começo de nova vida, promessa de não promover julgamento de outrem, de maior respeito a todos, de desenvolver mais e melhor empatia e resiliência.

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