CONTEMPLANDO

Falando em línguas

Em dezembro de 2021, quando da passagem pela sabatina no congresso de André Mendonça, então indicado para ocupar uma cadeira de ministro no STF, Michele Bolsonaro pulou de alegria e proferiu algumas vocalizações incompreensíveis. Esse fenômeno é chamado de glossolalia. E não tem nada de novo nem de espetacular, embora seja muito pouco compreendido. E como tudo que é pouco compreendido, as explicações místicas e religiosas são as que entram para a cultura popular. Há quem diga que seria a língua dos anjos. Veja só! Resolvi falar desse tema só agora porque li recentemente ‘Imaginary languages’ (MIT Press, 2023), da linguista francesa Marina Yaguello, e o tema aparece no livro em alguns momentos. Lembrei, então, do episódio e resolvei pesquisar um pouco mais.
Na Bíblia há algumas menções ao fenômeno, como em Coríntios I, no versículo 2: “Porque o que fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende, e em espírito fala mistérios”, e no versículo 14: “Porque, se eu orar em língua desconhecida, o meu espírito ora bem, mas o meu entendimento fica sem fruto.” Na igreja católica ele perdeu importância com o passar do tempo, mas nos ritos neopentecostais ele tem muita força. É uma forma de comunicação direta com Deus, uma manifestação do Espírito Santo ou algo assim. Muitos confundem o fenômeno com a xenoglossia (a capacidade de falar uma língua que não se aprendeu ou com a qual não se teve contato), que na Bíblia está exemplificada no episódio de Pentecostes, em que estrangeiros de diversas nacionalidades foram capazes de ouvir uma pregação como se tivesse sido feita na sua própria língua materna. Há muitos relatos de xenoglossia ao longo da história, muitas vezes ligados à possessão demoníaca ou à incorporação de espíritos por médiuns.
Há alguns aspectos linguísticos peculiares nesse tipo de manifestação. Uma das funções básicas da linguagem é a comunicação, o estabelecimento de relações interpessoais, a transmissão de informações. Há outras funções, como aponta Jakobson (a poética, metalinguística etc.). A glossolalia é particular por parecer uma pura forma expressiva, a vocalização pura de alguma emoção muito forte. Nas línguas humanas as formas convencionadas para expressar emoções são as interjeições: ai! (para dor), ops! putz! (algo inesperado). Mas note que se alguém diz ai! sabemos que o falante experenciou alguma dor, não que está feliz, que foi pego de surpresa ou algo assim. Como a glossolalia envolve a vocalização de uma manifestação que se aproxima muito de uma língua humana (há vogais, consoantes, sílabas, ritmo etc.), a impressão do ouvinte é de estar ouvindo uma língua estrangeira, apesar de o falante não ser capaz de dizer o “conteúdo” do que acabou de vocalizar, e de as vocalizações se utilizarem de sons que pertencem à língua materna do falante. Isso quer dizer que dificilmente vamos ouvir um brasileiro que fala em línguas usar o famoso ‘i com lábios arredondados’ (um som comum no francês) ou um clique (som consonantal raro que ocorre em algumas línguas africanas). Os sons mais comuns são as vogais a, e, o, e sílabas com estrutura simples, consoante vogal, como pa, ma, ba, la, te, do etc.
Alguns linguistas entendem que o fenômeno seria uma manifestação da nossa criatividade linguística. Embora seja raro de acontecer, somos capazes de criar palavras do nada (isto é, sem que sejam derivadas de outras já existentes, fenômeno mais comum). Notem que inventar línguas é um tipo de atividade criativa bem interessante, e que parece estar um pouco na moda. Para dar alguns exemplos, quem é fã de fantasia e ficção científica já ouviu falar de klingon (a língua inventada da série Star Trek), quenia e sindarin (as línguas dos elfos inventadas por J. R. Tolkien para o universo de Senhor dos Anéis), dothraki e valiriano (do universo de Guerra dos Tronos), e shakobsa (a língua dos fremen, do filme Duna). Mas normalmente as línguas inventadas são inspiradas em algum idioma conhecido, e o inventor cria um dicionário e uma gramática para sua língua. Tolkien se inspirou no galês, por exemplo.
Do ponto de vista psicológico, o fenômeno também é de difícil compreensão. Alguns psicólogos acreditam que ele é aprendido no contexto religioso, já que não o vemos em outros círculos sociais. As pessoas que ‘falam em línguas’ podem fazê-lo por pressão por aceitação da congregação, como uma manifestação de histeria coletiva ou simples descarga emocional fruto de grande estresse. Embora sujeitos (homens e mulheres) com problemas mentais variados possam falar em línguas eventualmente, isso não quer dizer que quem o faça tenha algum tipo de distúrbio.
Estudos neurológicos apontam que as áreas cerebrais ligadas à linguagem não são completamente ativadas, o que indica que não estamos testemunhando uma “língua” de fato nessas ocasiões. As áreas cerebrais em que há maior atividade são as áreas ligadas às emoções, o que mais uma vez indica que estamos diante de um tipo de expressão emocional. Se há linguagem ali, ela está apenas a serviço da função expressiva, sem nenhum conteúdo místico ou religioso que precise ser desvendado.

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