Não sou originário da região do Vale do Iguaçu, mas venho de terras longínquas, nasci em Belém do Pará e me criei em São Paulo. E nestes dois anos vivendo nas Gêmeas, aprendi muito sobre mim mesmo. E há aí um elemento essencial nesse processo de aprendizado: a capoeira. É graças a ela e por meio dela que tenho achado meus caminhos. É essa manifestação popular que dá significado à minha vinda para o Paraná, que encontrei ao começar a dar aula de capoeira e aprofundar meus estudos sobre a riqueza de saberes que ela contém.
Sempre fui bastante curioso e busquei aprender sobre diferentes áreas e, apesar de ser biólogo, meu diletantismo me fez um grande apreciador da política, sociologia e filosofia. Como boa parte dos professores, prossegui depois da graduação para a pós, participei de congressos, escrevi artigos científicos. Tive o imenso privilégio de dedicar grande parcela da minha vida aos estudos, me tornei pesquisador e me familiarizei com a produção de conhecimento sob a perspectiva da nossa era (ao menos no ocidente). Mas isso tudo não me ajudou a constituir a visão de mundo que tenho hoje, e que me permite me situar no mundo e entender um pouco mais sobre meu propósito. A filosofia da capoeira, que também está no jongo, reisados, congadas e expressões culturais diversas é a maior preciosidade que já encontrei até hoje. Um dos ensinamentos é passar para frente aquilo que se aprende com respeito e reverência aos que chegaram antes. E essa é a ideia da presente coluna.
É por conta desse preceito que dou aulas e ofereço oficinas nas escolas para compartilhar um pouco do que sei sobre a capoeira. Sofisticada demais para que se possa apreender seus significados em apenas um encontro, um texto ou numa conversa, ela também é poderosa o suficiente para mudar o rumo de uma vida apenas com um contato fugaz. Nos espaços em que abordo a capoeira, tento trazer reflexões que talvez sirvam para desencadear mudanças maiores naqueles que se sintam tocados. Aqui vou destacar alguns elementos centrais na capoeira que acredito serem cruciais. O uso do termo “crucial” aqui não é acidental, a palavra se origina de Instantia Crucis, plaquetas em forma de cruz que orientam quem passa por um cruzamento entre vias, ou seja, se encontra em uma encruzilhada.
A circularidade talvez seja um dos pilares mais importantes da capoeira. Presente na roda, no canto e na movimentação, ela apresenta outra visão sobre a nossa existência. Enquanto o pensamento ocidental é linear, apegado à ideia de avanço, progresso e objetivo final; a circularidade é mais honesta e realista. A existência humana não é análoga aos capítulos de um livro ou episódios de uma série, mas opera muito mais como o próprio mundo e o que nele habita: ocorre em ciclos, estações que se repetem, idas e vindas. Às vezes se está por cima, em outras, por baixo; temos alternância entre alegrias e decepções e até a vida em si se repete: a começarmos indefesos e dependentes quando crianças, estado ao qual retornamos na idade avançada. Abandonar a ideia de linha reta, de que tudo é meio para um determinado fim, significa se libertar de uma avalanche de expectativas irreais e da prisão utilitarista em que nos encontramos.
Aqui entra outro grande saber: devemos sempre retornar para podemos avançar. Não existe futuro sem o resgate do passado. Sem consultar e reverenciar nossos predecessores, corremos o risco de nos vermos como elos soltos, quando na realidade estamos atados aos que vieram antes. Por isso que a cultura popular que vem da diáspora africana é tão firmemente ligada aos antepassados. Derivada do conceito de circularidade, o culto à ancestralidade implica que o passado em si não passa, mas permanece como parte de nós. Em um mundo voltado cegamente para o futuro, ficamos mutilados dessa parte e perdemos a referência de nós mesmos ao acharmos que a constituição do nosso “eu” está separada do “nós”. É fácil de ver o quanto, na capoeira, há repetidas referências aos mais velhos, os mestres, os pais, os anciãos – e essa é a mensagem sendo passada, por sinal, entre gerações.
Assim como nossa existência está atada aos que vieram antes, ela também está ligada aos nossos semelhantes vivos. Na roda há claramente participação e diálogo entre todos os envolvidos. Seja cantando, tocando, jogando ou batendo palma, todos são pertencentes. E o diálogo, na forma de proposição e resposta, é perceptível no jogo, no canto, nos instrumentos e entre esses constituintes. O berimbau “conversa” com a voz e também com o pandeiro, e toda a percussão dialoga com o jogo, que também influencia no canto. Esses diálogos que se dão de maneira concomitante carregam um propósito: unir partes num todo muito mais poderoso que a simples soma dos indivíduos. Em outras palavras, “eu sou porque nós somos”. A coletividade seja talvez uma das mais subversivas mensagens da capoeira, o que a fez ser muito perseguida e ainda hoje temida. Se todos experimentassem esse senso de integração e comunhão, seríamos muito menos sujeitos à exploração e à manipulação.
Enfim, a capoeira é uma arma que protege seu povo não apenas fisicamente, mas também espiritualmente, emocionalmente, psicologicamente. E isso faz dela muito mais transformadora e contundente do que outra arte marcial.