PROJEÇÕES DA HISTÓRIA

O rio Jangada por pouco não ficou argentino

A publicação do laudo de arbitragem de Grover Cleveland, presidente dos Estados Unidos, em 5 de fevereiro de 1895, marca um dos capítulos mais importantes da definição do território brasileiro. Ao definir a fronteira com a Argentina como sendo os rios Peperi-Guaçu e Santo Antônio, o mandatário estadunidense encerrou uma disputa antiga reconhecendo o relatório apresentado por José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, como inteiramente procedente e as proposições brasileiras como as que deveriam ser seguidas. Esta foi a primeira de uma série de vitórias de Paranhos Júnior, que entrou para a história como um dos maiores diplomatas brasileiros, e representou o agravamento da disputa interestadual que culminou nos conflitos armados da região contestada, entre 1912 e 1916, tão conhecidos dos habitantes de nossa região.

O que é bem menos conhecido (aliás, o que é quase nada conhecido) é o fato de que, caso as argumentações argentinas apresentadas pelo diplomata Estanislau Zeballos tivessem sido aceitas por Cleveland, o território argentino englobaria uma região muito maior do que a área ocupada pelo município de Palmas, que emprestou seu nome à disputa (conhecida como “Questão de Palmas”). Na verdade, ele chegaria até o limite de uma nova localidade criada em 1890 após ser desmembrada da sua, até então, sede: Porto União da Vitória. É o que comprova um importante documento preservado por Roberto Domit de Oliveira, exposto no histórico e belíssimo Casarão Domit, em Irineópolis. No mapa confeccionado em algum momento entre 1890 e 1894, o limite máximo da área contestada pelos argentinos é o rio Jangada, no ponto onde está presente o marco da fronteira entre os estados do Paraná e Santa Catarina, estabelecida pelo acordo de limites efetivado em 1917.
A questão vem de longe. Mais especificamente de 1750, quando o Tratado de Madrid definiu a fronteira entre Portugal e Espanha, na região, nos seguintes termos: “a partir do rio Uruguai, seguindo pelo Peperi-Guaçu, continuando por uma linha seca até a nascente do Santo Antônio e, posteriormente, prosseguindo até o rio Iguaçu”. Apesar da precisão conceitual, o século XVIII foi marcado por uma grande imprecisão geográfica em todo o mundo. Embora rios e acidentes de relevo fossem conhecidos, batizados e catalogados, ninguém poderia afirmar com certeza, uma vez no terreno de observação, onde se encontravam. Assim, embora os rios tivessem sido claramente nomeados no documento, permanecia em aberto o problema de sua exata localização, tema que gerou o debate resolvido apenas em 1895. Problema semelhante ocorreu na chamada Questão do Amapá, ao norte, onde a fronteira com a França também permanecia indefinida pela incapacidade de localização precisa do rio Oiapoque. Acontece que em 1713, data da assinatura do Tratado de Utrecht entre Portugal e França, a fronteira ficou definida no “rio de Japoc, ou Vincent Pinson”. Só que o rio Araguari, localizado mais ao sul, também foi conhecido como rio Vicente Pinzón durante muito tempo, o que levou os franceses a argumentar, posteriormente, que era esse o curso d’água que deveria separar sua colônia do território brasileiro. Caberia, novamente, ao barão do Rio Branco defender a posição brasileira em novo arbitramento, cujo laudo final exarado em 1 de dezembro de 1900 por Walter Hauser, presidente da Confederação Suíça, novamente deu ganho de causa ao Brasil.
O mapa presente no Casarão Domit representa um dos mais bem preservados documentos acerca da disputa pelo território de Palmas. Confeccionado em português e inglês, traz no nome o motivo de sua importância: “Mappa do Brazil Meridional, mostrando a parte do seu território reclamada pela República Argentina”. Lá está em posição de destaque, como cidade fronteiriça das pretensões apresentadas por Zeballos, “União da Victoria”, localizada às margens do rio Jangada, fronteira defendida pelos argentinos. Ao apresentar a área contestada como ‘parte do seu [do Brasil] território reclamado pela República Argentina’, o autor deixou claro seu posicionamento sobre o tema. Ao produzir um documento dotado de grande precisão cartográfica, nos lembra que a história jamais pode ser tomada como uma coleção de processos pré-determinados. Dependeu de um único homem a possibilidade de ouvirmos cotidianamente o idioma espanhol nas ruas de nossas cidades – Grover Cleveland. E foi em função do excepcional trabalho realizado por outro homem que isso não aconteceu e que, hoje, os limites do território brasileiro se encontram nos arredores de Foz do Iguaçu ao invés de aqui – José Maria da Silva Paranhos Júnior.
O que remete uma vez mais à extraordinária riqueza histórica dessa região. Que dizer do terreno onde se encontra o marco da divisa na colônia Jangada, em Porto União? Neste lugar é possível encontrar um monumento de primeira grandeza que marca a existência de uma fronteira interestadual criada após uma guerra responsável por milhares de mortes, fato único em todo o país. Ao lado do marco, o visitante pode no mesmo olhar desfrutar da vista do belo rio Jangada e saber que há apenas pouco mais de um século ficou definido que a margem oposta não pertenceria a um país estrangeiro. Pode refletir que o marco que hoje jaz, uma vez mais, abandonado bem poderia estar marcando uma fronteira internacional. E que o fato de estar abandonado – como, de resto, todo o terreno – bem mostra o quanto ainda precisamos avançar enquanto sociedade na compreensão e valorização de nossa própria trajetória. Trata-se de um dos meus lugares favoritos. Um pedaço de chão cuja beleza apenas rivaliza, como tão bem me ensinou o mapa preservado pelo amigo Roberto Domit, com sua importância histórica para o processo de definição territorial dos dois principais Estados nacionais da América do Sul.

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