Mês passado passamos por um marco importante, o último 20 de novembro foi feriado nacional pela primeira vez, dada a instituição do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra pela lei nº 14.759 de 2023. É, sem dúvida, um avanço importante a homenagem a Zumbi dos Palmares e a dedicação da data para reflexão e cultivo de nossa memória histórica. A data rememora a captura e assassinato do líder palmarino a 330 anos atrás, e foi reivindicada por muitos anos como símbolo da resistência negra e da conscientização acerca do racismo em contraposição ao 13 de maio de 1888, data da Abolição. Esta última, ocorrida há apenas 136 anos, carrega consigo a dupla insígnia da vergonha: em primeiro lugar, por nos lembrar que fomos o último país do mundo a abandonar o regime escravocrata e, em segundo, pela tentativa de glorificar a família real, na forma da Princesa Isabel. A busca por pintar a família Orleans e Bragança como heroica esbarra na própria história, já que em 1889, ano seguinte à Abolição, cai o Império e se inicia a República, demostrando como a manutenção dos estratos dominantes e as estruturas de poder eram profundamente dependentes da aberração histórica da escravidão.
O estabelecimento oficial da data é importante ainda por combater dois dos grandes problemas que temos enquanto nação: a tendência ao esquecimento da nossa história e a contemporização. É por conta destes equívocos que perdoamos os perpetradores dos mais nefastos crimes contra nosso povo, como os torturadores na ditadura civil-militar ou até romantizamos o papel de abusadores, assassinos e traficantes de escravizados como os bandeirantes, os senhores de engenho, barões do café, coronéis e generais como os que atuaram exterminando as populações caboclas na região em que nos encontramos. Exemplo disso é que a artilharia da 5ª Divisão do Exército recebe o nome de Marechal Setembrino de Carvalho. Não se trata de revirar o passado, pois ele se encontra muito presente, a exemplo do recente debate sobre anistia aos que buscaram derrubar o estado democrático de direito no ano passado. O episódio nos remete ao general Olympio Mourão Filho, anistiado por tentativa de golpe em 1961 e um dos conspiradores no golpe de 1964: o perdão e a conciliação nos leva a repetir a nossa (triste) história.
Eu entendo que essa discussão tem o condão de trazer um incômodo em grande parte das pessoas, pois elas imaginam que rememorar significa o mesmo que não buscar a superação, quando é exatamente o oposto. Apenas podemos virar a página ao compreendermos os fatos e extrairmos deles as lições para evitarmos cair nos mesmos erros. Há também o falso entendimento de que a responsabilização e a reparação são formas de manter conflitos quando deveríamos buscar a “pacificação” e a “harmonia”. Ocorre que não se constrói uma sociedade harmônica empurrando para baixo do tapete os problemas e forçando uma conciliação que nunca ocorreu. Ainda há extermínio de povos indígenas, ainda há uma severa estratificação social por conta do racismo, populações marginalizadas continuam sob o controle do braço armado do estado, ainda há escravidão, a tortura de presos se disseminou nos presídios e membros das forças armadas ainda fazem ameaça de ruptura em plena luz do dia. Assistimos a agentes de segurança arremessarem um homem de uma ponte e um outro executar com 11 tiros um rapaz pelo crime de furtar produtos de limpeza. Naturalizamos o horror para não ter de cumprir o dever cívico de reconhecer nossa história, repleta de violência desde a sua fundação.
Há, ainda, outro erro comum que surge no debate sobre o Dia da Consciência Negra: a ideia de que precisamos de uma “consciência humana”, que olhe e valorize igualmente qualquer pessoa, independentemente de raça, cor, credo ou origem. Apesar de bem-intencionada, essa ideia é enganosa ao equiparar pessoas que lutam contra a desumanização com aquelas que têm prontamente sua cidadania e direitos garantidos. As estatísticas mostram que não são predominantemente as pessoas de origem asiática, europeia ou árabe que sofrem cotidianamente os abusos policiais, a execução sumária, as prisões preventivas que se arrastam por anos sem julgamento, o subemprego, a indigência e falta de condições dignas de vida.
Ademais, nenhum grupo conquistou direitos defendendo “consciência humana”, basta imaginar como seria cômico imaginar que os judeus, grupo vitimizado pelo holocausto, defendessem no pós-guerra os direitos de dignidade, autodeterminação e liberdade não para si próprios apenas, mas para os alemães, colaboradores ou não do extermínio. Ou se os oficiais fossem perdoados em nome da pacificação e de “virar a página”. Claro que devemos olhar para todos os flagelados, independentemente de sua origem, mas sem com isso esconder que há grupos mais vulneráveis e que isso se dá pelo persistente racismo em nossa sociedade.
Pedro Rodrigues Sousa da Cruz
Professor e pesquisador do IFPR União da Vitória, graduado em Biologia e doutor em Genética Humana pela UNICAMP, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas/IFPR, capoeirista da Casa Avuô e integrante do grupo de percussão Maracá.