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CAROS AMIGOS

Adeus amigo

Quando se é criança ou temos muito medo de quase tudo, ou não temos medo de quase nada, ou há ainda os que têm lá seus medos, mas por orgulho não os externam.
Em meu tempo de garoto, boa parte de meus amigos não era lá muito corajosa exceção feita a Tyrone José Braz Duarte, de quem já falei em uma de minhas crônicas.
Na categoria intermediária, com alguns medos enrustidos, mas não demonstrados, estávamos eu e aquele que até o dia 10 de dezembro, dia em que nos deixou, muito antes da hora, era meu mais antigo amigo, Nivaldo Feliman Camargo. Conhecemos-nos em 1968, primeiro como adversários, mas já no ano seguinte, ficamos muito amigos. Em nossa vizinhança havia muitos meninos e poucas meninas, o que fazia com que tivéssemos uma turma muito grande que batizamos de Patota da Barão, uma vez que muitos de nós morava na Rua Barão do Cerro Azul, onde nos reuníamos todo santo dia e noite.
Como disse, anteriormente, eu e Nivaldo tínhamos lá os nossos temores, mas como um não queria ser menos corajoso do que o outro, quase nunca demonstrávamos os nossos medos.
Como só tive filhas mulheres, confesso não saber como é hoje, essa coisa de ter ou não medo, ou de demonstrar ou não, entre os meninos. Em minha infância e, principalmente, na pré adolescência, essa coisa era bastante emblemática, tanto que volta e meia, fazíamos alguns testes para demonstrar coragem ou entre a maioria, a falta dela.
É preciso dizer que aqui não estou fazendo um panegírico de minha coragem. É verdade que nunca fui medroso, mas a força de minha coragem advinha, basicamente, de meu orgulho e de meu medo de demonstrá-lo. Aí já há uma forma de medo.
Um de nossos testes de coragem consistia em entrar no Cemitério Municipal à noite.
Ficávamos todos, uns 15 garotos, na esquina das ruas Costa Carvalho, com Ipiranga. Primeiro entramos por volta de 9 da noite. Apenas Nivaldo e eu entramos. E tinha que entrar sozinho, ir até a cruz, acender uma vela e fazer um sinal para os garotos que estavam uma quadra acima.
Mesmo os que não entraram nos desafiaram, queremos ver vocês entrarem à meia-noite. Lá fomos nós, um de cada vez. Nivaldo foi primeiro, fez o sinal e aí foi minha vez. Também fui e fiz o sinal, previamente, acordado.
Aí numa bravata típica da adolescência nos fizemos um desafio que parecia mais assustador, entrar até o final do Cemitério. Por que ele parecia mais assustador? Porque depois da cruz não havia mais luz, e não seria permitida nenhuma iluminação artificial, como lanterna ou vela.
Para saber se iríamos até o final, alguém teria que entrar primeiro e esperar o outro ou os outros.
Como ninguém além de Nivaldo e eu havia se habilitado sequer a entrar ali na frente do Cemitério e num horário muito mais cedo, não seria desta vez. E não foi.
Decidimos sortear quem entraria primeiro. Fui o sorteado e esperei meu amigo lá nos fundos, onde ainda não havia muro e sim uma cerca. Nivaldo não titubeou e também entrou.
Passávamos assim por um batismo de coragem, mas o pior ainda estava por vir e que era enfrentar dois temíveis irmãos que moravam na Rua Castro Alves e atormentavam quase que diariamente, nossa turma. Um deles era um pouco mais velho do que nós e reza a lenda, teria matado a mulher, depois de adulto. O outro era de nossa idade. Eles quase sempre irrompiam do nada e nos punham pra correr. Nessa hora não dava pra esconder o medo, o negócio era correr.
Até que uma tarde, quando Nivaldo me esperava com mais alguns amigos em frente à minha casa, eles apareceram. Todos os garotos correram e Nivaldo resolveu ficar, cansado que estava de fugir, decidiu enfrentá-los.
Estava tomando sopapos e pontapés de todo jeito, até que sai de casa e me deparei com a cena. Nem pensei em correr, pensei apenas que iria apanhar junto. Perdi, completamente, a noção do razoável e com uma ripa que havia arrancado da cerca da casa vizinha à minha, fui pra cima dos valentões. Despedacei a ripa nas costas do primeiro e continuamos sem ripa. Saímos bem machucados, mas para nosso regozijo, eles saíram piores e o que é melhor, correram e nunca mais nos importunaram. Foi preciso Nivaldo encarar os machões para percebermos que as feras não eram tão feias como pareciam ser. Eles foram embora da vizinhança, quando mais ou menos na mesma época fizemos um campo de futebol, ali mesmo na Barão do Cerro Azul e como comentei em outra crônica, nosso time se chamou Cerro.
Logo nos primeiros dias de nosso glorioso campinho, começamos a ter a indesejada visita noturna de uns sujeitos que vinham para quebrar as traves.
Fazíamos uma espera e eles não apareciam e assim foi, sucessivamente, até que decidimos fazer traves com pés e que retirávamos todas as noites. Certa noite nós nos esquecemos de guardar as traves e como de costume, nos reuníamos na churrasqueira da casa dos irmãos Paulo e Zinho Murara, que hoje moram em Canoinhas, para jogar canastra, quando fomos avisados por Gilmar Preizner, o Gima, que faleceu ainda garoto, vítima de leucemia, que as traves haviam sido roubadas. Gima disse que eles haviam carregado as traves descendo a Barão e dobrando na Costa Carvalho e que ainda daria tempo de nós os alcançarmos se agíssemos rápido.
Saímos no encalço da dupla e já ao virarmos a esquina, eles nos esperavam de ripas em punho.
Os primeiros que chegaram levaram uma saraivada de ripadas e acabaram deixando eu e Nivaldo no mano a mano.
Como Nivaldo não correu e estava em desvantagem porque não possuía uma ripa, voltei umas duas casas e arranquei um pau da cerca e parti pra batalha. Acabei quebrando minha ripa, mas também quebrei a deles. Aí partimos pra bordoada de mãos limpas. Em briga de rua, eles eram melhores do que nós e estavam levando a melhor, ou seja, estávamos apanhando, até que Hamilton Trentin, que morava bem em frente onde brigávamos, saiu de sua casa e disse que iria chamar a polícia. Foi quando eles correram. Levamos as traves de volta e constatamos que eles não eram assim tão bons de briga e que nós em maior número, poderíamos enfrentá-los.
Mais uma vez foi preciso a coragem de meu bravo irmão, Nivaldo Camargo, para que tivéssemos atitude.
Brigamos com a dupla, por cerca de alguns meses. Noite sim, outra também. Algumas vezes só eu e Nivaldo, em outras nós dois e Paulo Murara e outras ainda, eu, Nivaldo, Paulo, Zinho e Bughay, também de saudosa memória.
Uma crônica é muito pouco para falar de um amigo, de uma amizade que durou 45 anos e duraria a vida toda, se meu irmão não tivesse nos deixado sem aviso e como disse, cedo demais.
Dessa maneira, peço licença àqueles que me lêem, para continuar na próxima semana, deixando aqui meu minhas lágrimas e meu triste adeus a Nivaldo Feliman Camargo, que foi quem, ao saber reagir, nos fez esquecer o medo de defender aquilo que para nós, na época, era o mais precioso dos bens, nosso território.
Adeus amigo.

12 de dezembro de 2013 – Delbrai Augusto Sá

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CAROS AMIGOS

Lágrimas

Para o falecimento do Grande Guerreiro, Guerino Massignan, assim o chamava Lulu Augusto, ocorrido dia 10 de junho aos 103 anos de idade.

Seu Guerino foi amigo de minha família desde sempre. Lembro que ainda menino ia à sua empresa cobrar a assinatura do jornal, e, embora não fosse ele quem pagasse, sempre me recebia com bom humor e gentileza.
Deixa no seio de sua família e na sociedade paranaense uma lacuna impreenchível.
Também endereço condolências aos familiares de Carlos Dalmaz, falecido em 22 de maio, aos 79 anos. Carlos foi vereador em União da Vitória e desde alguns anos comandava sua pequena empresa madeireira, onde tratava seus clientes com rara cordialidade. Era de sua empresa a serragem que abastecia os campos de futebol de toda nossa vizinhança. Quem de minha idade que não jogou no mitológico Campo do Dalmaz.
Lamento o falecimento de meu amigo Élcio Ernesto Zimmermann, dia 14 de junho, aos 63 anos de idade. Élcio foi meu colega nos bancos escolares no Externato Santa Terezinha e no Túlio de França. Era leitor de minhas crônicas e sempre que nos encontrávamos na rua, relembrávamos de tempos idos.
Endereço meus votos de pesar à família de minha querida professora, Ana Maria Ogrodovski Albuquerque, falecida em 1º de junho de 2022 aos 81 anos. Tive o privilégio de ser seu aluno e a conheço há vários anos, desde que era minha vizinha na esquina das ruas 1º de Maio e Costa Carvalho. Ao lado de sua casa, seu filho, meu grande amigo, Paulo Albuquerque, construiu com seus pares o campo do Vasco da Gama, rival de nosso Cerro Futebol Clube, cujo campo era quase em frente de minha casa, na rua Barão do Cerro Azul, onde hoje reside o caro amigo, Fauzi Bakri.
Endereço ainda aos familiares de Clarice Roderjan Manfroni, minhas sinceras condolências, pelo seu falecimento em 10 de junho. Dona Clarice enquanto residiu em União da Vitória, foi uma de suas grandes damas.
Finalmente registro o falecimento de minha querida professora Delci Hausen Christ, em 13 de junho e por quem eu sempre tive um imenso carinho. Também tive o privilégio de ser seu aluno. Delci era sinônimo de elegância, de cultura e sabedoria. Perco uma amiga caríssima e uma de minhas mais queridas leitoras.

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CAROS AMIGOS

Velhas canções que o tempo não apaga

Escuto música desde meus 8, 9 ou 10 anos. Dessa forma costumo perseguir algumas canções que eu ouvia há muitos anos atrás, às vezes por meses, às vezes por anos e às vezes até por décadas. Assim foi com a canção I’ll you be there with you, do cantor e compositor português Paulo de Carvalho, que acho que é de 1974, ou de 1975. Eu ouvi essa canção pela primeira vez na rádio Continental, de Porto Alegre, eu tinha uns 16 anos. Nessa época eu ouvia muita rádio, em especial a Continental, de Porto Alegre, a Mundial, do Rio de Janeiro, e, a Excelsior, de São Paulo, todas em AM, já que as FMs estavam circunscritas apenas às grandes cidades. Procurei esta canção na Internet, assim como tentei comprar o disco, sem, no entanto, nunca tê-lo encontrado. Há alguns dias encontrei-a no YouTube, onde já havia, em vão, procurado. Muitas vezes ao ouvir música sozinho em casa, imerso em pensamentos chego a conclusão de que ouvir música é quase sempre um prazer solitário, portanto, poucas vezes compartilhado.
As músicas ouvidas apenas no rádio eram de fato algo que se fazia em solidão e só podiam ser compartilhadas, quando eventualmente as conseguíamos gravar, ou encontrá-las em disco, o que nem sempre era tão fácil.
Eu costumava anotar o nome daquelas velhas canções, para procurá-las depois. Quando conseguia comprar os discos, aí sim compartilhava com meus amigos e amigas. Algumas das canções que eu busco há mais de 40 anos até hoje não encontrei. Uma delas, por exemplo, chama-se, I gotta believe, que não lembro mais quem a interpretava, daí a dificuldade extrema em encontrá-la ficando ela apenas em meu imaginário. Essa canção que menciono figurava em um disco de meu amigo Tito Schmidt com quem há muitos anos não tenho contato e dessa forma não encontrei mais o referido disco. Recentemente, encontrei uma loja de discos usados, em São Paulo. Nesta loja encontrei raridades, como o disco, Out the court of the Crimson King, de 1969, e que foi relançado em 1972, da seminal banda King Crimson, um disco dos anos 70 de Harold Melvin and the Blue Notes e também o primeiro Black Beat, que era uma compilação de canções da soul music que mais ou menos por volta de 73 fez muito sucesso nos Estados Unidos, principalmente, na Filadélfia denominando-se The sounds of Philadelphia- T.S.O.P. e de onde se espraiaria para o resto do mundo e atrairia inúmeros ouvintes entre os quais eu. Consegui comprar nesta referida loja, Eric Discos o Black Beat número um que eu já tinha, mas que estava em péssimo estado. Tenho também o Black Beat três, quatro e seis. Não consegui ainda achar o dois e o cinco, mas os procuro e creio que muito brevemente deverei encontrá-los. Também tenho encontrado algumas raridades aqui em União da Vitória na loja Porão Discos, de meu amigo Osmar Wolf. Muito recentemente encontrei o disco de 1973, Shoot out at the fantasy factory, da antológica banda Traffic, uma das primeiras a unir o rock com o jazz e que há muitos anos procurava, e, ele estava ali na prateleira como que a minha espera.
Tenho ótima memória para nomes de música, onde as ouvi pela primeira vez e também onde as encontrei em disco.
Uma dessas que procuro há décadas é Mudanças, do cantor e compositor gaúcho, Gil Gerson. Ouvi essa canção pela primeira vez na televisão em 1973, na fase classificatória do Festival Abertura, da TV Globo. Ouvi e gostei na hora, mas ela acabou não se classificando entre as 16 finalistas e, portanto, não figurou no disco que a Globo lançou logo após a divulgação do resultado final.
Assim eu a ouviria umas poucas vezes na Rádio Continental de Porto Alegre, naquele longínquo ano. Somente a ouviria novamente em 1979, quando fui programador da Rádio União. Lá encontrei um disco com as canções que não se classificaram para as finais. Toquei-a inúmeras vezes na programação da União, enquanto lá estive entre 79 e 80. Antes de sair da Rádio, gravei todas as canções que gostava e que não tinha em disco. Quando vendi meu gravador de rolo, um Akai 4000 DS, junto com ele se foram 70 fitas, cujo conteúdo variava entre 4 a 6 horas de gravação em cada uma delas; assim, lá se foi Mudanças e tantas outras que não tinha e que levei décadas para novamente garimpar. Enquanto escrevo essas linhas, lembrei de Mudanças e a procurei no You Tube, sem muita esperança de encontrá-la, porque já o havia feito e nada. Mas desta vez a coisa foi diferente, lá estava ela impávida, esperando por mim. Aí lembrei também de Vaila, de Ednardo e O tempo, de Reginaldo Bessa. Ambas foram concorrentes do mesmo Festival e estavam disponíveis no You Tube. O Abertura foi vencido pela canção Como um ladrão, de Carlinhos Vergueiro e que era minha preferida, enquanto Vaila, era minha segunda opção e a favorita de meu amigo Nivaldo Camargo, que infelizmente, não está mais aqui para compartilhar essas indeléveis lembranças.
Fica a triste constatação da bela canção de Reginaldo Bessa: …eu olho e até me assombro, como pode esse tempo passar… a gente dormiu acordado e o tempo depressa passou…
Entretanto, são as lembranças, como na velha canção de Carlinhos Vergueiro, que nos alentam a prosseguir:
…Como um ladrão roubei rostos, restos, risos. Como um ladrão corri riscos, mares, medos e fui deixando rastros, marcas, mortes e carregando pedras presas, pesos e me entregando sempre, pelo prazer de ter as sensações totais…
Até a próxima.

26 de maio de 2017 – Delbrai Augusto Sá

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CAROS AMIGOS

Renê Augusto, meu tio, meu pai, meu amigo

Dia 26 de fevereiro de 2010, aniversário de meu estimado tio René, escrevi essa crônica em sua homenagem.
Essa crônica foi lida de forma emocionada, por minha filha Nina Rosa, no lançamento de meu livro Meus Caros Amigos, no dia 7 de junho deste ano, no Clube 25 de Julho. A leitura de Nina Rosa emocionou a todos naquela noite e agora eu a republico, uma vez que neste domingo, 10 de agosto, se completa um ano do falecimento de meu querido tio René.
Dia desses, aqui mesmo, em outra crônica, escrevi que uma das primeiras palavras que aprendi a escrever, antes mesmo de entrar na escola, foi Fluminense. Também disse que quem me ensinou a escrever foi minha mãe, tias Lulu e Dina e meu tio René, de quem herdei a paixão pelo Fluminense. Aprendi a escrever em letra de forma, hábito que carrego até hoje, embora, atualmente, pouco escreva em papel. Primeiro porque enxergo muito pouco e segundo porque no computador posso escurecer ao máximo a tela, o que atenua minha fotofobia, sendo que ainda posso aumentar as letras.
Mas o que queria dizer é que escrevia a palavra Fluminense e gostava de mostrá-la ao tio René quando ele chegava de seu trabalho no fim da tarde. Seguimos torcendo pelo Flu e aos domingos – uma vez que a televisão ainda estava na era do vídeo-tape e não transmitia jogos ao vivo -, ouvíamos os jogos pelo rádio. Ouvíamos ora pela Rádio Globo, cujos narradores eram Jorge Cury e Valdir Amaral, que se revezavam, um em cada tempo, ora pela Rádio Tupi, com Doalcei Bueno de Camargo. Depois dos jogos, que acabavam sempre por volta das 7 da noite, íamos à cozinha fazer um sanduíche com a maionese do almoço e linguiça crua. O sanduíche era fantástico e hoje ainda o faço vez por outra. A memória do paladar nos remete a remotos e inesquecíveis tempos.
Ao ouvir jogos de futebol e, principalmente, ainda muito criança ouvir as indeléveis batucadas que tio René organizava na varanda de nossa casa – também na mítica Barão do Cerro Azul, mas, uma quadra abaixo da casa onde cresci e meus familiares moram desde meados dos anos 60 -, começava a me achar um homenzinho e não mais uma criança. Fato que se consolidou em meu imaginário infantil, em uma festa na casa dos pais de nosso Leocádio José Vieira, na rua 1º de Maio. As casas antigas possuíam apenas um banheiro e como lá havia um grande número de homens, o mesmo era muito disputado. Por sorte o quintal da casa era enorme e lá pelas tantas, depois de algumas, ou melhor, muitas cervejas, tomadas por eles, a cerca dos fundos passou a ser usada como mictório. Depois de uma meia dúzia de colinhas, também quis ir ao banheiro, que estava ocupado. Não podendo mais esperar, lá fui eu para a cerca ao lado de mais alguns. Senti-me um adulto completo. Pobre Dona Leandrina que, certamente, teve que jogar muita água e desinfetante em seu quintal, comprometido por uma trupe politicamente incorreta.
Na medida em que fui, efetivamente, deixando a infância e ingressando na pré-adolescência, aprontei algumas artes, entre as quais destelhar o galpão de uma casa que ficava no fundo de nosso campo de futebol e cujas bolas eram confiscadas pelo proprietário do terreno. Certo dia ele saiu e não pensamos duas vezes: vamos recuperar o que é nosso. Como disse, tiramos algumas telhas do tal galpão e pegamos nossas bolas, apenas elas, tendo ainda o trabalho de recolocar as telhas. O fato aconteceu em plena tarde, mas um vizinho chamou a polícia que nos encontrou em meio a uma partida de futebol em nosso campo. Vimos a velha rural parar em frente ao campo e já deduzimos que a coisa iria ficar preta. Alguns conseguiram fugir, outros não. Como eu morava quase em frente ao campo, fui um dos que escapou, mas já no jardim de minha casa, decidi voltar e não deixar sozinhos aqueles que não conseguiram fugir, os irmãos Paulo e Zinho Murara e Nelson Martins. Quando estava voltando, pedi a outro menino, Gilmar Preiszler, o Gima, que fosse até a Delegacia da Fazenda e avisasse meu tio do acontecido. Tranquilizei meus amigos e disse que logo sairíamos da cadeia, uma vez que tio René era amigo do delegado e que as bolas eram nossas, portanto quem tinha que ser preso não éramos nós, mas o dono do terreno que já havia retirado uma tela de alambrado, que colocamos em cima da cerca divisória para impedir que as bolas caíssem em seu terreno. Arrancou nossa tela e teve a pachorra de usá-la para construir um viveiro. Resumo da ópera, que pra nós não foi trágica, mas bufa, fomos, rapidamente, liberados pelo delegado que era mesmo amigo do tio René. De quebra, saímos ainda com as bolas. Só não recuperamos a tela, reavida mais tarde por outras vias. Com uns 15 anos de idade percebi que muito mais que um tio, René era um pouco meu pai, e um grande amigo.
Juntos tomamos muitas cervejas, acompanhadas de muitos bolinhos de carne, rolmops e outras iguarias botecárias, acompanhados em determinados momentos, de outra grande figura, Lamartine Augusto, meu outro tio, que nos deixou em 1997, e era excelente companhia (só tinha um defeito, era flamenguista). Nos últimos anos em que fomos assíduos frequentadores da vida de boteco, Leocádio Vieira, o popular Cadinho, que menciono anteriormente, também era companhia indispensável. Muitas histórias do mundo da política, dos esportes, da música, temperavam nossas incursões aos mais célebres botecos da cidade, como Bar do Lucas, Bar do Manduca, Zézito, Bar Coroa entre outros e onde cruzávamos com pitorescos personagens, os quais acabariam protagonizando inspirados artigos da coluna Em Primeira Mão, assinada por nosso René.
De pena muitas vezes ferina, René colheu algumas inimizades, quase todas por divergências ideológicas, que o tempo amainou. Muitos dos então detratores acabaram sendo seus amigos. Mas muito mais que divergências, ele amealhou grande número de admiradores, entre os quais me incluo e me orgulho de tê-lo como um de meus mais Caros Amigos. Vida longa.
Tio René viveria mais três anos, cinco meses e quatorze dias. Eu e minha mulher Margarete o visitamos no hospital, domingo, 4 de agosto e na segunda-feira, 5, quando conversamos sobre nosso Fluminense, sobre algumas pessoas que também estavam na UTI, sobre sua neta Valentina que está por vir e ele também disse que seus exames estavam normais e que ele estava prestes a receber alta. Isso não ocorreu, ele estava bastante debilitado e seu estado se agravou na manhã de sábado. Parece ter esperado a visita dos familiares para se despedir. Foram vê-lo o genro Giovani e o neto Vinicius, que ao chegar começou a conversar com ele, e, ele embora sedado e em coma induzido, pareceu ouvir, já que sua pulsação aumentou de cinquenta e poucos para mais de 90 e sua pressão arterial caiu para 4 por 2, depois 4 por 0, o que resultou em uma parada cardíaca.
Como disse nas informações que forneci ao vereador Daniel Rocha, enfocado em sua derradeira coluna, em 12 de julho, juntamente, com minha filha Nina Rosa e com o ex-prefeito Alcides Fernandes Luiz, René embora sempre abordasse os mais variados temas, direcionou seu olhar para a reportagem policial, sempre preocupado com as injustiças e com a impunidade.
Sua postura de um jornalismo de denúncias, fez com que colhesse muitos admiradores e muitos amigos, assim como alguns detratores que sempre estiveram à margem da lei e que, muitas vezes, por serem os poderosos de plantão e envergarem colarinhos brancos, por ela nem sempre eram alcançados.
Sua morte deixa uma lacuna no jornalismo local e um imenso vazio em nós, seus familiares, e em seus amigos, mas deixa sobretudo um exemplo a ser seguido, de um homem honesto, de um jornalista sem medo, que jamais se intimidou mediante as mais diversas pressões e ameaças. Deixa o exemplo e a lembrança de um pai, marido, irmão carinhoso, generoso e que amou os seus sem restrições.
Tio René, meu companheiro de jornada diária, que comigo esteve nos momentos bons e nos difíceis, tenho a convicção de que ontem não lhe dei adeus, mas sim, um até breve.
Termino dizendo que sua morte nos deixou uma imensa sensação de vacuidade e uma enorme saudade, mas também nos deixou preciosos ensinamentos, como companheirismo, generosidade e coragem, que nos estimulam não mapenmas como cronistas e jornalistas, mas nos fazem sermos seres humanos melhores.

8 de agosto de 2014 – Delbrai Augusto Sá

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