A tarde estava excessivamente melancólica. Recebemos notícias de amigos muito próximos que nos deixaram, foram sem se despedir e passaram a fazer parte dessa assustadora e horrenda estatística pandêmica.
Estávamos assistindo um filme (acredito que pela quinta ou sexta vez). “Somos tão Jovens” (direção de Antônio Carlos de Fontoura) e que conta a história de Renato Russo. Atmosfera, evidente, nos remete aos psicodélicos anos 80. Gravador de fita, all star azul, rádio AM/FM, a turma ao redor da fogueirinha cantando e dançando, embalados pelo violão e vinho de garrafão.
Eu e a Cinthya fizemos rápida imersão a esse tempo e elencamos algumas boas lembranças dessa icônica fase.
“Jovens” dessa época, obrigatoriamente, deveriam conhecer George Orwel, em especial “1984”; Marcelo Rubens Paiva e sua clássica obra “Feliz Ano Velho”; saber cantar as canções de Gil, Chico, Caetano, fundamental saber o que era o “Clube da Esquina”. Afinal como se enturmar sem ter esse conteúdo? Você ainda ganharia alguns pontos positivos se tivesse participado do movimento, “diretas já”, jaqueta jeans e camiseta básica com a letra “A” no circulo, era tempo “Anarchy”. Também era fundamental conhecer (um pouco pelo menos) da história de um certo aventureiro de nome Ernesto, argentino da classe alta. Entres tantos outros pré-requisitos.
Nessa época se conhecia muita gente. E como não existia rede social, apenas o telefone fixo, que poucos abastados possuíam, o contato era reto. As opiniões eram difusas, e os debates constantes. Era olho no olho, aperto de mão, abraço e beijo. A amizade se fortalecia ao longo dos dias de convivência.
Além do telefone, como disse para poucos, o mais confiável meio de comunicação era a carta. Sim o velho e bom correio. O que transformava aquele rapaz vestido de azul e amarelo, um cara esperado, aguardado e diria até adorado. Quando ele aparecia, por certo traria uma carta, uma encomenda, um disco, uma revista… enfm… era bom de ver o “carteiro”. Era recebido de forma festiva.
Voltamos ao filme. Nessa altura, o Renato Russo já estava formando a Legião, com Dado e Bonfá, quando somos surpreendidos com “palmas” no portão. Olho pela janela e surpresa: é o Carteiro, igualzinho aos anos 80, com seu inconfundível uniforme azul e amarelo e um sorriso no rosto. Confesso que não me empolguei. Deve ser algum “boleto”, pensei. Ao me aproximar ele diz: “Carlos e Cinthya?”, eu respondi que sim. Ele me entrega um volume misterioso, postado em São Lourenço do Oeste SC, e junto estava uma carta. Como nos velhos tempos: envelope, escrita a próprio punho, o que personaliza ainda mais o objetivo da remessa.
A missiva emocionou, pois carregada de afeto e carinho. O conteúdo, absolutamente, pessoal, tratava de decisões, opções, passado e principalmente futuro, mas que revelava uma surpreendente sintonia fina e afetiva. A carta veio como retorno ou resposta. Originou-se em conversa pretérita, como nos velhos e bons tempos, sem rodeios e que versava sobre nossa caminhada. Contextualização de experiências, algumas que deram certo e de maioria que foram infelizes. Sem conselhos, nada disso, foi intercâmbio mesmo. Pura troca de ideias.
Não estou afirmando que o passado era melhor e que as pessoas eram diferentes, longe disso. A tecnologia evoluiu e mudou as relações interpessoais.
Mas assim como hoje, nos anos 80, a amizade se fortalecia por uma força extraordinária.
Lembro que falamos sobre coisas boas, e como a música e a poesia, podem nos auxiliar no resgate e fortalecimento da caminhada do “Bom combate”. Não se trata de mostrar caminhos ou dar “exemplos”. Como prega o grande Emicida: “Busque o caminho, não um dedo que te aponte ele.” Ou ainda: “Pra que o amanhã não seja só um ontem com novo nome.”
A subscritora da carta nos (re)conquistou. Suas linhas revelam uma pessoa doce, sincera, espírito evoluído, pensamento social responsável, e resumem bem o que Emicida diz na sua obra (Amigo):
Quem tem um amigo tem tudo
Se o poço devorar, ele busca no fundo
É tão dez que junto todo stress é miúdo
É um ponto pra escorar quando foi absurdo
É presente dos deuses, rimos quantas vezes?
Como em catequeses, logo perguntei
Pra Oxalá e pra Nossa Senhora
Em que altura você mora agora, um dia ali visitarei
Nesse momento que o afastamento social parece não ter um fim tão próximo, e que as notícias ruins se acumulam como é revigorante ter, pelo menos, alguns instantes de alegria, emoção e certeza que ainda temos amigos e que podemos conversar sobre tudo, sem disfarces ou preconceitos. Que ainda existem pessoas que poderiam estar a qualquer tempo, ao lado da fogueirinha tocando violão, ou trocando mensagens via redes sociais, mas que fazem questão de manifestar o amor e amizade por carta mesmo, fazendo valer a pena viver a vida. Como foi bom receber uma carta, ela lava a alma, fortalece, emociona e revigora a nossa caminhada.
Dedicamos essas mal traçadas linhas, à nossa querida e doce, Rovena.
23 de abril de 2021 – Carlos Alberto Senkiv