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LITERATURA

“O jardim dos poetas”, de Leónidas Lamborghini: Os prazeres da imaginação poética

Em 1999, Leónidas Lamborghini, um dos mais curiosos poetas argentinos contemporâneos, lançou o livro “El jardín de los poetas” (Editora Adriana Hidalgo), inspirado no tríptico de Bosch, “O Jardim das Delícias”, pintado em 1503. Vinte anos depois do livro e mais de quinhentos depois da pintura, os dois jardins continuam vivos.
No quadro, o pintor retratou o jardim das delícias terrenas ao lado do paraíso e do inferno. A cena é bem conhecida. Personagens interagem de forma luxuriosa, divididas entre o bem e o mal numa vida de pecados, embora aparentemente desinibidas e sem sentimento de culpa. Mas há uma cena que me chama a atenção. Ela é menos conhecida, mas não menos importante. É a imagem do tríptico fechado, que representa o mundo no terceiro dia da criação. Roland Barthes chegou a enxergar nela uma figuração do neutro, (in)definindo-o com as expressões “rebento”, “ovo ainda não eclodido”, ou seja, antes do sentido.
Três cenas: A imagem daquilo que ainda está se fazendo, o mundo rebento, tal como se nos apresenta no terceiro dia da criação, e o ovo ainda não eclodido. Três configurações semelhantes em sua dissemelhança.
No prefácio, Lamborghini observou que o livro foi escrito durante um exílio no México, entre 1977 e 1990. Ele nos informa que o que está em jogo nesse jardim é a Humanidade de poetas. Poetas que são como heróis, ou melhor, anti-heróis, da épica de um só terrível e cômico desejo: “escrever o poema”.
Trocando muitas vezes a vida pelo êxtase, ou antes, buscando na vida uma experiência de êxtase por meio da palavra, os poetas são esses áugures que veem nas vísceras do texto o sangue da vida, ou que veem nas vísceras da vida o sêmen do texto. A poesia é este jardim de delícias margeado pelo inferno ou pelo paraíso: “loucura, absurdo, perda de tempo ou, simplesmente, vaidade. E a busca da beleza?”
Anárquica por natureza, a política da poesia é sua despolítica. E antes mesmo do poeta ser contra o Estado, o Estado foi contra o poeta. Platão chegou e foi logo banindo o tal: “Se algum homem assim”, diz ele, “vier até nós para nos mostrar sua arte, nós nos ajoelharemos diante dele como um ser raro, santo, maravilhoso: mas não permitiremos que fique. Nós devemos ungi-lo com mirra, colocar uma guirlanda de lã sobre sua cabeça, e mandá-lo embora para outra cidade”.
Quem escreve ou se entrega profundamente aos prazeres da poesia sabe a dor e a delícia de fazer o que faz. Lamborghini afirmou também no prefácio que ao longo do processo de criação – e é justamente o processo de criação do livro que me chamou a atenção – buscou para a obra um “padrão de escritura” que teve como horizonte inconfessável o que de inconfessável tem a própria arte: o desejo de fazer tudo com nada. O processo que o moveu, parece-me, foi o de buscar a Forma. E se o livro é a materialização dessa busca, isso significa que seu resultado não nos apresenta mais do que um rebento, um ovo ainda não eclodido, o mundo no terceiro dia da criação, ou seja, um tríptico, ou um neutro – note-se na capa do livro a reprodução da pintura de Bosch. Para escrever, o poeta teve que visitar o fogo do purgatório: “Experimentei, nesse momento – paradoxalmente – uma inesperada felicidade: a de ter encontrado nesse mundo, um lugar, este Jardim, esse local para ficar e permanecer: em suma, no meu tempo, uma casa do meu jeito onde o riso e o horror intercambiam e confundem, recíprocamente, suas máscaras”.
Dividido em três partes, como o tríptico de Bosch, “El Jardín de los poetas” apresenta um “Poetario de la espera” (como aquela do mundo no terceiro dia de criação), um “Poetario de los sueños” (como aquele que subjaz no universo do próprio Bosch) e um “Poetario de las metamorfosis” (como aquelas metamorfoses operadas entre plantas e animais no Jardim das Delícias). Muitas outras relações entre a pintura de Bosch e o poema de Lamborghini poderiam ser imaginadas. Contento-me apenas em apontar para o fato de que o poeta produz um jogo de escritura como quem estabelece conexões inusitadas e combinações curiosas entre um determinado conjunto de versos, repetindo com diferença imagens poéticas, ou melhor dispondo versos em recorrência em outras sequências, propiciando efeitos de sentido e de sons no mínimo curiosos.
No livro, Lamborghini passa o tempo apresentando inúmeras ações realizadas pelos poetas, ações que dizem respeito à espera e ao sonho na maior parte das vezes, como: “Poetas soñando su poema / antes de revelar una foto” ou “Poetas soñando su poema después de secarse la cara”, ou “Poetas soñando su poema / mientras arreglan un lavarropas”.
Essa experiência gerada entre som e sentido talvez possa ser chamada de hesitação – ou excitação, sensorialidade, ou sensualidade que nos leva novamente ao Jardim de Bosch. Esse procedimento, tão caro a Lamborghini, me fez lembrar outros livros dele como “El riseñor”, que gosto bastante, e “Siguiendo el Conejo” (uma releitura curiosíssima de Lewis Carroll). Repetir com diferença faz parte do jogo paródico de Leónidas Lamborghini.
Neste Jardim, podemos descobrir o que esperam os poetas inspirados pela musa, ou o que fazem os poetas enquanto esperam a inspiração da musa, ou o que sonham os poetas inspirados pela musa, ou o que fazem os poetas enquanto estão inspirados pela musa, ou no que se transformam os poetas enquanto esperam a inspiração da musa, ou o que fazem os poetas enquanto se transformam em poetas inspirados pela musa, ou o que esperam os poetas enquanto sonham, ou em que sonham os poetas enquanto esperam a inspiração da musa, e por aí vai…

27 de agosto de 2021 – Caio Moreira

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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