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REMINISCÊNCIAS

A pescaria

O inverno de Porto União da Vitória (sempre úmido, névoa, garoa, eventuais chuvas) nas férias escolares era o tempo de pescarias.
Isso em fins de 1950, quando ainda Valões era Distrito de Porto União, havia muitas histórias da quantidade e qualidade de peixes existentes no poço do rio próximo à Sede do Distrito de Santa Cruz do Timbó.
Num sábado qualquer de julho de 1957, depois de ajudar a juntar as tralhas necessárias para instalar acampamento à beira do rio, conferir, revisar o aparelhamento destinado à pesca, com outros companheiros, inclusive tios maternos.
A manhã do sábado cinzento, garoando, pouco estimulava sair para pescar. Somado a isso, o caminho a ser percorrido desde a vila Poço Preto até a beira do rio Timbó, frontal a vila de Santa Cruz, pouco acima do portinho da balsa que fazia a travessia do rio, era longo, tortuoso, estrada mal conservada, sem qualquer revestimento: durante dias ensolarados excessiva poeira; quando chovia barrenta, intransitável.
Iniciada a viagem malgrado as condições temporais e previsão futura, embarcados no velho Fordinho Tigre, ano 1939 acredito, mal acomodados na precária carroceria, dividíamos espaço além dos apetrechos ajuntados, com um bote de madeira, lona para barraca, costela bovina, engradados de cerveja, garrafão de pinga, baralhos e alguns outros materiais supérfluos como linhas, anzóis, iscas e varas para pescar, cedo da manhã partimos com enorme expectativa e esperança de boa pescaria, carpas e traíras eram os objetivos. Todos os embarcados comentavam entusiasmados pescarias passadas, cada um contando “causo” especial que fora protagonista, ou não. Se verdadeiros, quem sabe?
Seguia o Fordinho em disparada marcha, aproximados 40 km/hora, ora tossindo, ora gemendo os aclives, vencendo galhardamente os obstáculos, quando em trechos mais difíceis em razão do mau tempo, empurrado pelos passageiros, patinando no lodaçal. Nada desanimava os pescadores, não seriam os muitos buracos na estrada, as subidas enlameadas que exigiam trabalho braçal para vencer, mesmo acorrentadas as rodas de tração do valente Fordinho.
O trajeto percorrido do início até o destino, cerca de 30 km em tempo estimado de 4 horas, foi pelos integrantes da aventura considerado satisfatório. Chegado ao destino, cada um dos integrantes desempenhou a função que havia sido destinada: armar a barraca; prover de lenha seca ao acampamento para colocar a costela para assar; lançar o bote ao rio; prover iscas; e, principalmente, providenciar que a cerveja fosse refrescada convenientemente.
O tempo chuvoso e frio foi determinante para que fosse inaugurado o estoque de “pinga” com a finalidade precípua de prevenir resfriados, gripe, qualquer tipo de provável mal à saúde dos então pescadores. E assim iniciou a pescaria…
As lides para a instalação do acampamento consumiram com o tempo em especial a fogueira para assar a costela, lenha catada nos arredores molhada, praticamente, imprestável para produzir brasas, calor para assar a fogueira, enquanto isso esvaia-se o tempo… A lide fora intensa, a noite chegou e do valente Ford Tigre fora instalada tomada de energia da bateria para iluminação da barraca, vez que tão somente a lanterna a querosene, daquelas que os guarda chaves da Rede Ferroviária usavam, era insuficiente.
A fogueira instalada à frente da barraca que fora armada, essa pouco confortável com a água da chuva vertendo por todos os lados, impossibilitava que fossem instaladas as “camas” dos pescadores. No momento isso pouco importava porque devido o mau tempo, o aperitivo para prevenir males e outros contratempos, aproveitando os baralhos, formaram-se duplas para jogar “truco” e as disputas seguiram noite adentro, até amanhecer.
A fogueira para assar a costela não cumpriu, totalmente, a tarefa para que fora destinada: a costela ficou dura, parcialmente, crua, mas serviu para o repasto em intervalos dos pescadores que se empenhavam nas disputas, essas acirradas, vencidas algumas vezes por uns, outras por outros. Quem sucumbiu e não conseguiu aguentar até a manhã foram os engradados de cerveja, nem o garrafão de “pinga”.
Amanhecido o dia chegou o momento de arrumar as tralhas no Fordinho. Com sacrifício fora retirado o bote da água e colocado na carroceria do caminhão; desarmada a barraca. Juntadas as tralhas; guardados os equipamentos de pesca; descartadas as iscas; momento de partir.
Todos a bordo do caminhão, bote, tralhas, engradados de garrafas vazias, tudo que fora levado. Momento de dar a partida no veículo e a tristeza da partida já era presente. Ligada a chave de ignição, calcado o pedal de arranque do caminhão Fordinho, nhon fez e nada mais. Gasta a carga da bateria, durante a noite que possibilitou a jogatina, não teve poder o arranque de acionar o motor do veículo, estávamos limitados ao abandono… Não havia possibilidade de fazê-lo (o caminhão) pegar no “tranco” em face do relevo do terreno. Única possibilidade o uso de manivela. Designado o mais forte, porquanto era pesada a rotação da manivela. Acionada a manivela uma duas, três, diversas vezes, houve a lembrança de “ligar” a chave de ignição. Ligada, funcionou o motor, “tossindo” como de costume, mas funcionando.
E lá fomos de volta já assombrados pela tristeza do retorno e pensando na próxima vez… Quem poderia saber se noutra oportunidade iríamos voltar e utilizar o material de pesca, talvez pescar…

12 de novembro de 2020 – Irapuan Caesar Costa

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REMINISCÊNCIAS

A viagem

Os fatos a seguir relatados ocorreram por volta da década de 1970, tempo ainda quando estava trabalhando na R.F.F.S.A. lotado no Departamento de Material em Curitiba. Semanalmente, às sextas-feiras à noite, embarcava no ônibus das 19:00 horas da empresa Estrela Azul em Curitiba para União da Vitória e retornava no das 07:00 horas nas segundas-feiras. Por mais de ano essa foi a cansativa rotina até que finalmente fui transferido para trabalhar no já extinto Almoxarifado da Rede em Porto União/União da Vitória.
A rotina que era do conhecimento dos funcionários da empresa Estrela Azul lotados na Agência de União da Vitória, motoristas e cobradores, me concedia privilégios mesmo sem reinvindicações, porquanto todos com o passar do tempo desenvolvemos sentimento de amizade que ainda permanece com os poucos remanescentes daqueles dias venturosos.
Conhecedora das minhas preferências, a responsável pela venda dos bilhetes de passagens da empresa, reservava a poltrona 05 (segunda fileira de poltronas, no corredor do veículo) nas segundas-feiras sem necessidade de solicitação, apenas porque tinha a certeza que iria viajar.
Foi numa segunda-feira do mês de junho, frio e chuvoso, retornando a Curitiba que tive experiência inusitada, ensinamento que guardo nas lembranças memoriais e serviram para me situar no devido lugar que devo ocupar nesse mundo de humanos dos quais nada de melhor, de maior, de privilegiado, devo pretender. Sou apenas mais um, igual a todos, nem mais, nem menos.

Fustigado pela garoa fina e fria que insistia em acontecer nos invernos em União da Vitória, manhã fria, desguarnecido de proteção da chuva, sigo andando ligeiro para a Rodoviária para, novamente, embarcar no ônibus e retornar a Curitiba.
Como sempre me dirijo ao guichê da empresa, adquiro a passagem que já estava expedida, me dirijo ao veículo, certo que a poltrona 05 estava reservada, desnecessário conferir o bilhete adquirido. Adentro ao veículo, a poltrona 06 ocupada por homem moço que imediatamente constatei que era muito reservado, nenhuma importância me concedeu, fato surpreendente.
Acomodo-me na poltrona depois de ajeitar a bagagem que trazia no maleiro correspondente. Sentado, cumprimento o companheiro – “bom dia!” Mal ouço a resposta balbuciada, nada mais.
Os demais passageiros se colocam nos lugares próprios, dada a partida percorre o veículo vias rumo ao destino; partindo da rodoviária situada na Praça Getúlio Vargas (atual Alvir Riesemberg), segue à rua Ipiranga, alcança rapidamente a Avenida Manoel Ribas, a Ponte “Nova”, e a rodovia macadamizada com destino a Luzia, a Rondinha, a São Mateus, a Curitiba…
Trafega o veículo normalmente pilotado com maestria por piloto experiente, competente, com segurança em via macadamizada, molhada, decorrente das chuvas, característica regional de inverno.
O avanço dificultoso do veículo que trafega sacolejando, a lotação do ônibus, o ar viciado das janelas fechadas que impregna o ambiente corrobora com o desconforto da conhecida viagem.
… e o companheiro de viagem permanece quieto, impassível, impessoal, voltado a frente, sem tomar conhecimento de minha presença, impossível de observar a expressão facial.
Os quilômetros da rodovia vão sendo superados, a estrada continua mal conservada, o ônibus sacoleja, trepida, o ambiente cada vez mais poluído agora acrescido de fumaça de cigarros de muitos passageiros. É sofrível o ambiente, verdadeiro calvário. A meu lado permanece o companheiro de viagem impassível, impessoal, circunspecto em suas emoções, voltado para si sem se importar com os demais viajantes, em especial comigo. Uma rocha impenetrável.
Custosamente o veículo vence os obstáculos, avizinhasse a reta de São Mateus, ultrapassada a ponte do rio Potinga, esperança de chegar ao Ponto de Café em São Mateus, início da via asfaltada, certeza da melhoria das condições de viagem. E durante todo tempo o companheiro de viagem continua impassível, impessoal, ausente como se nada o afetasse, ignorando a tudo e a todos. Quem sabe se imagina melhor, superior a tudo e a todos, intocável.
Custosamente o ônibus chega a Rodoviária de São Mateus, chegado o momento do desembarque, todos com muita pressa, ansiosos, menos o companheiro. Observo que, estacionado o veículo no local de desembarque, saca da bolsa que estava debaixo do assento, pacote de leite, copo plástico e pão recheado. Vejo-o com os dentes, rasgar o canto do pacote de leite e com dificuldade transferir o líquido ao copo, saio do veículo. Vejo e descreio que tão impoluta personagem se digne a se sujeitar a ingerir leite de pacote trazido, pão recheado com provável queijo e mortadela, quando pode desembarcar e na Lanchonete da Rodoviária tomar uma boa xícara de bom e quente café com leite, acompanhada de saboroso pastel de carne. Faço juízo nada positivo da pessoa, justifico a impassividade, a impessoalidade que se porta, certamente se considera mais e melhor que todos, esse é meu juízo.
A viagem segue, a via asfaltada, ainda nova, incólume, o trânsito é rápido, vencidas rapidamente as distâncias logo é alcançada a cidade da Lapa, Contenda, Araucária, avizinha-se Curitiba e o companheiro de viagem ainda continua impessoal, impassível, silente observando o encosto do banco frontal sem se importar com qualquer coisa, atitude de quem está só, único no mundo.
Ultrapassado o bairro do Pinheirinho em Curitiba, alcançada a avenida Silva Jardim, próximo à esquina da rua 24 de Maio, o motorista previamente de acordo com passageiro, estaciona o veículo próximo ao meio fio do passeio público.
O companheiro de viagem que pouco se manifestou durante a viagem, tenta se levantar do assento dizendo: – “Com licença, desço aqui! ” Levanto do assento para dar passagem. Tateando, alcança a bolsa debaixo do banco, se apodera de bengala que ainda eu não havia visto, agradece e se despede – “Obrigado, boa viagem” – balizando-se com o instrumento alcança o passeio público. Observo que no passeio há pessoas aguardando-o.
Surpreso, indignado, extasiado constato que aquele que julguei impessoal, impassível, intangível, soberbo, mais e melhor que todos, não era mais do que um jovem cego que solitariamente viajava submisso a todas as dificuldades, as agruras que a cegueira impõe. Nada de impessoalidade, impassividade, inatingibilidade, apenas incompreensão, ignorância, ausência de empatia, de resiliência cercou o companheiro de viagem.
Afinal o ônibus estaciona na Rodoviária de Curitiba. Fim da viagem, começo de nova vida, promessa de não promover julgamento de outrem, de maior respeito a todos, de desenvolver mais e melhor empatia e resiliência.

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REMINISCÊNCIAS

Retorno ao passado

O passado que somente existe em nossas lembranças, é fonte geradora de todos os tipos e formas de emoções. Umas mais fortes, outras nem tanto, todas certamente bulindo com o emocional.
O dia está findo, a tarde se esvai inexoravelmente, a noite se aproxima vagarosamente, sem pressa, certa do inevitável eventual amanhecer.
Vejo à beira do infinito a sucessão dos fatos como ordenada consequência de acontecimentos, uns derivados de outros, todos determinados ou autorizados, por ser maior.
E, quando apreciando o presente, sentindo o sabor do passado, tenho claro que o futuro não é mais do que a soma dos atos e fatos outrora vividos, apenas o resultado consequente de decisões tomadas e que no presente são imutáveis.
Sob essa ótica não há arrependimento por prática ou não, de atitudes que tenham ou não sido tomadas. Todas respondem apenas e tão somente na medida das consequências. Se não houver consequência, não haverá arrependimento.
Entretanto, apesar da materialidade e da composição, tomada em face da existência, responderá independentemente da atitude pelos fatos e atos que produzir. Essa é a lei da probabilidade, quanto mais próxima ao resultado final, mais certa a autoria da consequência.
Os limites do imaginário vão além do certo, chega às raias do impossível, próximos ao gosto da realização dos desejos. Nada se compara à sensação de realização de desejo que, no entanto, por maior que seja a conquista, é efêmera porque substituída por nova de imediato.
O retorno ao passado no desfrute do imaginário, possibilita sentir novamente emoções passadas, quimeras não tão intensas, porém reais. A soma das emoções pessoais determina a estruturação da personalidade do ser, daí a importância de que sejam boas e desfrutadas intensamente.
A lua saúda a morte do dia; bom para uns, nem tanto para outros. O fim do dia, a magnitude do esplendor sempre motiva o despertar de emoções invocando o retorno ao passado.
… que assim seja!!!!

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REMINISCÊNCIAS

A discussão

Tarde quente, ensolarada, própria para consumo de bom chope gelado, brisa fresca, apreciando a paisagem. Sentados à mesa, amigos desfrutam das benesses proporcionadas, o tempo transcorre placidamente, de forma lânguida, preguiçosa. Nada no horizonte que pudesse turbar o estado de espírito amigo, senão a discussão que estava ocorrendo sobre a sociedade em geral, política, depois de ter-se esgotado o de futebol. Dizia alguém:

  • Esse governo é imprestável, roubam, nada produzem, não atende às necessidades da educação, desviam os recursos destinados à saúde, à cultura, é uma lástima! Outro retruca: – Você foi um dos que criticaram o governo anterior, classificando-o de esquerda, que promovia subsídios aos menos favorecidos em detrimento à classe produtora. Terceiro questiona: – Afinal, qual a diferença entre esquerda e direita? Quem sempre perde é o trabalhador, ele nunca desfruta dos ganhos de um ou de outro, e quando há queda da receita, o trabalhador é o responsável; quando há superávit foi o administrador quem obteve o sucesso. Quarto deflagra: – Esquerda, direita é tudo a mesma coisa! De repente estavam os presentes falando alto, quase aos gritos, sem alguma possibilidade de acordo, cada um “puxando a brasa para seu assado”. Certamente deverão estar ainda discutindo, esquerda, direita, centro. Em toda discussão deve necessariamente haver Mediador, sob pena de não se chegar a consenso. Nos dias de hoje há conflitos expressivos e ambas as partes se acham donas da verdade. A Ucrânia alega que a Rússia invadiu, desmotivadamente, seu território; a Rússia afirma que foi a Ucrânia quem descumpriu tratado firmado entre as partes e concedeu independência à Ucrânia, para “engrossar o caldo”, duas províncias ucranianas com aspirações de independências engrossam as fileiras russas. Litigam também os palestinos (grupo Hamas) e os israelenses. Os palestinos alegam que Israel invadiu parte do seu território e estão buscando seus direitos; os israelenses, por sua vez, alegam que tem o direito de se defender e não pretendem a paz, mas o extermínio dos palestinos, isso a grosso modo. Todos se declaram donos da verdade. Como saber quem tem razão, ou não. Não há como afirmar quem ganha o litígio entre os contendores, o que se sabe que os países financiadores são realmente os que irão desfrutar dos lucros. Enquanto eles lutam entre si, desfruto do entardecer, da paz, da cerveja geladinha à sombra do velho cinamomo, apreciando a paisagem…

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