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LITERATURA

A poesia grávida de Mariana Ianelli: Todas as casas dentro da casa

À medida que leio os poemas e as crônicas de Mariana Ianelli, vêm-me à lembrança certas imagens do “Sermão de Nossa Senhora do Ó”, que Padre Vieira pregou em 1640, na Igreja da Ajuda, em Salvador. No texto, o prosador barroco observa que a Terra é um círculo que está contido em outro, o das esferas celestes. Estas estão contidas em Deus que, por sua vez, está contido no ventre de Maria, que o abraçou dando-lhe circunferência e a dimensão de sua divindade. Nossa Senhora está contida na Terra. E o ciclo recomeça. O círculo não para. O ventre de Maria, então, é esse imenso maior que o imenso, ou seja, o imensíssimo. Um círculo vai dentro de outro e Deus, por não ter imagem que o represente, é figurado com um O. O mesmo Ó formado pelo ventre grávido de sua mãe. O mesmo “Oh!” que é a interjeição do desejo da expectação ou da dor. A eternidade, por não ter uma imagem específica, é representada também pelo círculo, figura geométrica perfeita. O infinito é um Ó. O tempo distendido – como aquele que nascendo da pedra jogada no lago vai formando seus Ós -, é a própria fulguração do eterno. O desejo distende também o tempo, este que, por sua vez, faz crescer o desejo à medida que aumenta. Quanta angústia de espera mora no istmo de um instante? O ventre é um “O que compreendeu o imenso, assim como o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro círculo que compreendeu o eterno”, escreveu Padre Vieira.
Eternidade e desejo são duas coisas que se equivalem, são os dois Ós mágicos da vida. Cada círculo é a morada de um outro: A Terra, o Céu, o Deus, a Comunhão, e o Sagrado ventre feminino. São como as mil casas dentro da casa que prefiguram a obra de Mariana Ianelli. Na epígrafe de seu “Manuscrito do Fogo” (Ardotempo, 2019), podem ser encontrados os versos de Marize Castro: “Mil casas dentro desta casa / Cada uma com seu anátema / Oráculo / Olor.
Descubro em cada poema de Mariana algo singular e ao mesmo tempo múltiplo, algo particular e um estranho elo que faz cada texto corresponder aos outros. A literatura é esse eixo de tantas ligações. E quantas casas vão sendo construídas nesses poemas? Aos poucos, durante a leitura, vão surgindo estrelas – que ainda brilham depois de mortas, ou que às vezes brilham mais porque estão a morrer. São elas: as famílias lendárias, a mãe, a outra mãe, o sangue conjugado dos irmãos, o retorno para casa, os despojos do tempo, a lembrança da casa demolida, a mitologia da genealogia realizando a história de seus nomes, os livros póstumos, a cinza que é rastro e memória, os vestígios de alguma coisa, as cicatrizes, as ruínas, os diálogos com António Vieira, o filho, o filho pródigo, o pai, a casa que ainda pode ser amada, a Pietà, a descendência, a casa morta, o tempo perdido ou devorado, o tempo reencontrado, o tempo cindido, os ossos da casa, a casa deserta, o futuro repleto de antigamentes. São muitos os círculos, todos morando dentro de um outro. Todos contidos no ventre da poesia de Mariana Ianelli. Uma casa dentro de outra, todas dentro dela. E ela, a poeta, onde? Dentro dela e da casa, é claro. Maria, Mariana e seus Ós. Do hebraico e do sânscrito, o nome de Maria, “senhora soberana”, dá origem à Mariana. Ana, do Hannah, “cheia de graça”. Mariana, “mulher pura e graciosa”, aquela que vem de Maria. A poesia de Mariana vive no ventre da família.
Não se trata aqui – com Vieira – de sacralizarmos ou canonizarmos a obra da autora, longe disso. O anátema que figura em sua epígrafe, aliás, é a própria imagem da excomunhão. Contentamo-nos, no entanto, em apontar para uma dimensão religiosa que intuo nela ao ler seus livros. Viver a vida ou escrever religiosamente transcende qualquer ideia de religião ou instituição devotada à prática da fé. O religioso, em Mariana Ianelli, está na vida, no aqui e no agora, cheios de antigamente, mas também grávidos do porvir. E assim a escrita vai se constituindo como uma espécie de oração. Daí sua obra evocar em mim certos textos de Cecília Meireles, Hilda Hilst, Herberto Hélder, Clarice Lispector, Raduan Nassar, Caio Fernando Abreu, Wilson Bueno, ou a música de Erik Satie, Debussy, Brahms ou Bach. Não a comparo com eles, apenas celebro o que no meu ímpeto de leitor se agrega. Aliás, falando de tantos Ós, lembro de Pitágoras a defender que as esferas celestes tocavam uma música universal. É a base de uma verdade imemorial que vemos na poesia com suas infinitas e indefinidas correspondências. Mariana pensa por imagens, a poesia é seu jardim.
Escrevo tudo isso para chegar a uma outra casa, seu livro de crônicas “Dia de Amar a Casa” (Ardotempo, 2020), que reúne textos que vão de 2017 a 2020, no estopim da pandemia. Enquanto lia, fiquei pensando: “E se a casa nos amasse como nós amamos a casa, como seria?”. A casa é esse livro que guarda tanta coisa e está também dentro de Mariana. E essa morada é religiosamente imensíssima. A casa dela tem seus santos, seus rituais, seus terços, seus louvores cotidianos. E ela faz da palavra poética sua eminente comunhão. Mariana é um oratório. E comemoro a descoberta de suas crônicas como uma das coisas bonitas que me aconteceram nesses dias tão tenebrosos e cruéis. Redescubro, aliás, no seu texto, aquilo que Valdir Prigol escreveu sobre a vocação do gênero: “a transformação do cotidiano em matéria potencialmente lírica”.
A escrita de Mariana instaura em minha leitura a crise do comentário. É daquelas obras rebeldes que não se entregam fáceis aos caprichos de um comentador. E talvez seja também por isso que ela me pareça, desde já, tão fascinante. Eu leio, releio, sinto-a, e isso me basta. Não sei se quero entendê-la. Não sei resumi-la, ou criticá-la. Quero apenas conversar, vislumbrar a rosa a ser colhida em cada frase: A pele da pétala de um hibisco, o amor pela nuca ensolarada de uma amiga, o azul calmo do dia em que a avó morreu, o olhar do amante em uma fotografia de Doisneau, o miniconto de um milagre real encasulado em uma Nossa Senhora do Ó de Sabará, uma palavra-guimba mostrando que nenhum fogo é fútil, uma mulher que era uma multidão, um amor de repente deitando âncora na realidade, os pincéis escalavrados do avô, a lembrança que é um cavalo-marinho, ou uma cama no quintal debaixo das buganvílias.
Mariana aponta em uma das crônicas para a secreta claridade da avó nua em um quadro pintado pelo avô, em 1948. Penso que essa crônica me ajuda a compreender um pouco mais a obra da escritora. No retrato pictórico, a avó aparece nua, virada de costas, no primeiro plano. Vemos o torso de uma modelo despida, cujas mãos parecem esconder o sexo oculto ao espectador. Há uma certa timidez personificada pelo íntimo pudor dessas mãos sobre a genitália. É um gesto quase inútil, porque ela está ali inteira, e sua imagem entregue à expressão do pintor, entregue principalmente aos nossos olhos. Quanto mais ela se esconde, mais ela se revela. Vemo-la, ali, inteira. Com candura, Mariana toca a imagem da avó, prometendo-lhe cuidado e mão leve. É assim sua escritura. Uma mão que toca as coisas com delicadeza e afeto, ocultando e revelando num jogo de mostrar e esconder a beleza da casa, da família, dos objetos, da infância, das palavras, das alegrias, mas também angústia das dores, da indignação, da insatisfação, da saudade, da guerra, do desterro em sua própria terra. Mariana, seguindo certos passos (ou traços) do avô, compõe o texto como quem mistura tintas, esfumando, assim, com sábia imaginação, seus tons e luz e sombra, fazendo da poesia uma legítima aleluia. É com essa intensidade que ela mergulha também no presente, com os olhos abertos e em alerta aos dilemas do nosso tempo. É quando seus quadros capturam e pensam também o horror, mas nunca abrindo mão da delicadeza. Ela está também lá na indignação. É um gesto preciso e precioso.

26 de junho de 2021 – Caio Moreira

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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