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LITERATURA

“Área de Broca”, de Luciana Tiscoski: Um Gabinete de Curiosidades

Há quase vinte anos, quando lecionei no curso de publicidade, costumava com os alunos, nas aulas de redação, ler o livro de um tal Roy H. Williams, sobre marketing. Aprendi coisas interessantes com a obra, o que prova que até os textos mais inusitados podem nos oferecer conhecimentos curiosos. Lembro que o autor dizia que a área de Broca é uma espécie de palco no qual uma peça será representada na mente do ouvinte. Broca seria como um crítico de teatro, o juiz que determinaria se deveríamos ou não abandonar a peça. Para obter a aprovação do juiz, o espetáculo deveria eletrificar Broca com a emoção do inesperado. Ele dizia que enquanto um falante usa essa área para organizar suas palavras em frases compreensíveis, o ouvinte usa essa região do cérebro para antecipar o que o outro vai dizer, quando o que se ouve é previsível. Quando não há novidade alguma na comunicação, a atenção é comprometida.
Penso, por exemplo, na música “Cálice”, de Chico Buarque e Milton Nascimento. Em uma determinada passagem, ouvimos: “Mesmo calada a boca resta o peito / Silêncio na cidade não se escuta // De que me vale ser filho da santa / melhor seria ser filho da …”. Pensamos que a letra vai dizer uma coisa, um palavrão, um xingamento, e ela acaba por frustrar nossa expectativa pré-moldada, dizendo outra: “Melhor ser filho da outra / outra realidade menos morta / tanta mentira, tanta força bruta”. A surpresa ativaria uma área específica do cérebro, causando um certo prazer. Recordo que passávamos o ano com os aprendizes de publicidade imaginando situações criativas que pudessem surpreender Broca, um exercício auspicioso para o universo da propaganda, já que essa situação traria eficácia para o texto publicitário.
Lembrei disso quando li o curioso livro “Área de Broca”, de Luciana Tiscoski, publicado recentemente pela Editora Nave. Aqui, estamos na seara da literatura, distantes da comunicação social, embora a autora do livro seja também uma jornalista. A publicação não tem nada a ver com a publicidade e eletrifica bem mais a minha atenção e curiosidade do que qualquer propaganda. A literatura, pouco afeita a questões comerciais, no entanto, sabe vender bem mais o seu peixe.
Fico pensando quais reações químicas no cérebro do leitor o livro de Luciana Tiscoski consegue produzir. Cada frase dos seus contos é seguida por outra completamente inusitada. A autora nos oferece, assim, sempre uma surpresa. Ela ativa de fato nossa área de Broca. Por exemplo, depois de dizer “O frio em mim vinha das suas palavras úmidas”, escreve “A carta ainda nas minhas mãos, tremulante folha que se desintegrará com o tempo, como tudo, como nós”. Qual relação entre uma frase e outra?
O leitor caminha em busca de um centro, de um território, de uma zona de conforto, de um sentido, mas uma crise da representação se impõe, porque o significado sempre escapa. Quando imaginamos que uma frase vai complementar a anterior, explicá-la, o texto mantém a tensão, e aquele que lê deve continuar na corda bamba, dançando no abismo. É um movimento perpétuo. É um jogo. Godot nunca chega.
Importante lembrar que a capacidade de produzir estranhamento é uma das qualidades mais caras da boa literatura. O inusitado é o curinga da arte. No livro, as frases são cenas estranhas e curiosas como os sonhos: “Saiu do metrô e a sensação de ser uma toupeira só aumentava”. Ou: Olhares urso branquefeitos invadem o trajeto dos meus olhos em direção à porta do bar”. Ou: “Há muitos sóis que se prometia chuva. Caudalosa, há muito escaldada no sal, querendo ser uma corrente d´água se esvaindo, derramando-se na terra”.
A todo instante algo inesperado nos contos acontece. Sua narrativa é sempre vertiginosa. Os cenários são variados, os narradores estão sempre em deslocamento. De um bar na Alemanha à cidade murada de Kowloon, em Hong Kong, de uma estação em Paris a uma Praça de Porto Alegre, seus lugares viajam e se confundem, bem como seus tempos e personagens. De uma boneca que deseja um humano a um palhaço-fotógrafo em Berlim, de uma praticante de kinbaku a uma apaixonada por Monet, as personagens do livro são desencantadas, mas nos encantam pela singularidade com que são construídas.
Passeamos pelas páginas de Tiscoski como nas Passagens parisienses, com suas múltiplas entradas e nenhuma saída. A misteriosa chama do livro está também na sofisticação literária com a qual seus textos são permanentemente revestidos. Luciana di Leone escreveu na orelha da obra que sua linguagem é “terrivelmente sofisticada”, mas que nos chega “de modo fácil”, permitindo construir imagens raras. As referências, quase sempre indiretas, vão de Hilda Hilst a Wilson Bueno, de Rilke a Caravaggio, de Maiakósvski a Baudelaire e Alfred Jarry. Com uma boa dose de nonsense a lembrar alguns quadros ou escritos surrealistas, “Área de Broca” é esse palco no qual a autora-fotógrafa-pintora leva a escrita criativa à expansão do pensamento, às raias da poesia. O livro assume o risco de apostar no jogo como uma forma possível de fazer da literatura uma máquina de imagens inusitadas. Os contos, com ar retrô, são textos-passagens nos quais tudo é sonho. Ali, encontramos uma mulher com cabelos cor de fotografia, a saber “cinza tempo ido”. Ali, vislumbramos alguém dividido entre os ensaios sobre Rilke e uma mulher misteriosa que poderia se chamar Mirtza. Ali, espiamos o colecionador H e sua boneca Olímpia a mirar o flâneur, esse “homem flamante que flanava felino”. Ali, conhecemos a prostituta Maria Elvira e seu vestido amarelo que vai sendo manchado, como a vida, ao longo da trama. Tudo acontecendo no movimento entre um lugar e outro, por isso o livro é passeio, como no itinerário Nanterre – Saint Cloud. Entre um ponto de partida e outro de chegada, o que temos são digressões, puro monólogo interior, o deslimite da palavra.
Viajando no livro, percebemos o quanto suas histórias são tocadas pelos limiares poéticos entre a literatura e outras artes, e como os contos são quadros ou fotografias que nascem, antes de tudo, das ideias. É como, por exemplo, fotograficamente, Tiscoski escreve o conto “Umbo”.
Há um desfile de certos horrores no livro, como nas Tentações de Santo Antão, de Flaubert, que vai lembrando uma visita a um gabinete de curiosidades. Um “ovo”, de Hilda Hilst – bem poderia ser de Clarice -, um “touro branco” de Málaga, um inseto numa cena de kinbaku, uma toupeira, uma cobra, um templo poético construído só por mulheres. O livro é esse museu, esse quarto das maravilhas, esse jardim das delícias, onde tudo pode acontecer. Que este texto meu sobre a “Área de Broca” seja mais que uma mera propaganda. Como nos sonhos, seus contos, no fundo, são falados pelo desejo. A publicidade, em busca da sedução, bem soube tirar proveito disso. Manejar palavras é uma forma de encantar as ideias. O livro despedagogicamente ensina.

18 de dezembro de 2021 – Caio Moreira

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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