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LITERATURA

Cinco canções pra afastar a peste

Os filósofos gregos já nos falavam dos poderes medicinais da música. Em muitas culturas ameríndias, xamãs cantam para espantar maus espíritos, curando doentes e afastando a morte. Em um de seus namoros com a medicina, Mário de Andrade escreveu que Tamísides aconselhava a música contra pestes e as feridas. Demócrates, em especial, utilizava a flauta para curar pestes. Nas matrizes religiosas afro-brasileiras, canta-se para chamar os deuses. Sugiro que ouçamos e cantemos juntos, caros leitores, as cinco canções abaixo, para chamar os santos e espantar a pandemia que já ceifou só no Brasil mais de 400 mil vidas…

Berimbau – O encontro de Baden e Vinícius, do violão e da voz, da potência de Powell e da pena do poeta. Aquele encontro religioso e musical de dois bruxos na encruza do afro-samba. Pra quem faz de seu instrumento um berimbau, não há mandinga que não possa ser dedilhada e cifrada nos acordes de um violão. E assim o som vai quebrando todos os quebrantos. “Tempo de amor” é tempo de dor, ensina uma outra canção de um dos discos mais emblemáticos da MPB. Sofrer e amar, para Vinícius, são sinônimos inalienáveis. São coisas do coração. Na versão dessa música, registrada por Pierre Barouh, no Filme Saravah, Baden fuma e dedilha alucinadamente ao mesmo tempo, como se tocando em estado de transe. Chamo a atenção para essa cena. Em Afro-sambas, dá-se o encontro do Brasil com a África por meio de um oceano chamado música. São águas profundas. Saravá, Baden e Vinícius!

Por uma cabeza – Uma volta por Chacarita, seguindo os rastros do cantor, ou em la Boca, bairro boêmio de compadritos, nos arredores de Buenos Aires, ou mirar um velho casal milongueiro na feira de San Telmo, ou ouvir o bandoneón convidando a cantar Por una Cabeza, na confeitaria Tortoni, talvez nos bailes domingueiros de La Ideal, depois uma pizza em el Cuartito, ao som de Gardel e seus bons ares em todos os cantos da cidade. Chorar todos os mortos ilustres na Recoleta ou espairecer em la Plaza San Martin, depois no Parque Lezama, depois mirar Lola Mora, em la Fuente de las Nereidas, lendo ao mesmo tempo um poema de Douglas Diegues. Tudo além da fronteira. Quem sabe trocar uma canção por essa cidade, ou uma cidade por essa canção. Salve a malandragem porteña! E a música segue tocando.

Sinhá – Sinhá, de Chico Buarque e João Bosco, é uma canção que conta a história do Brasil. O primeiro narrador é um negro da senzala que é acusado de ter espiado uma dona branca que estava se banhando no açude. Ele se defende inutilmente e é torturado pelo senhor no pelourinho. Depois de uma alteração tonal (signo de uma mudança temporal no enredo da música), surge um segundo narrador que se diz herdeiro tanto do escravo quanto do senhor de engenho, ou seja, estamos diante de um narrador mestiço, que é o próprio brasileiro. O próprio Chico? Ressignifica-se a primeira parte da canção. Se o segundo narrador é herdeiro da casa grande e da senzala, isso significa que provavelmente o escravo tenha, no açude, enfeitiçado a sinhá. Somos, no Brasil, todos filhos desse idílio, isso sem contar o recorrente estupro sofrido pelas negras e índias, e tantas outras violências que geraram o que chamamos hoje de país. Brasil: Ame-o ou deixe-o!? Como em um poema de Drummond, o leite ao misturar-se com o sangue, formou o terceiro tom a que chamamos aurora. A imagem pode ser bela, mas não deixa de ser trágica.

Kosmic Blues- A voz de Janis Joplin vem do Éden (que fica próximo ao rio Mississippi), dá pra perceber ao ouvirmos Kosmic Blues. Perfumada de patchouli, abraça o espaço, depois o rasga e encanta. É alada e azul como o blues, mas ferve avermelhando o vazio da imensidão. Faz os seus feitiços para não ficar sozinha, mas, como sua dona, sofre astuta e angustiada sempre com a solidão. Anda de mãos dadas com o céu e nele tenta se agarrar para não cair. Nem Jimi nem Hendrix sabem de seu sal a queimar a pele em meio a algumas lágrimas que chovem ácidas e com atropelo pelo branco de seu lindo rosto.

Aquarela Brasileira – Meu Brasil é o Brasil de Leci Brandão, de José Datrino, vulgo Gentileza, de A.B. do Rosário, de Pixinguinha e Noel, Milton Santos, tia Ciata, Cruz e Sousa, João Maria, dos Sertanejos de Taquaruçu. Meu Brasil é o dos pobres e miseráveis, de Santa Cruz do Piauí, onde conheci o forró e a cajuína, do pinhão do Paraná, de Riobaldo e Diadorim. Meu Brasil é o profundo, de Tom Jobim, Villa-Lobos e Pedro Archanjo, do fandango, do pandeiro, da embolada, da vanera e catimbó! Dos novos baianos e dos velhos marinheiros. De Estamira e de João Lopes, bicho do Paraná. Meu Brasil é o que amo. Das novenas e benzeduras, com arruda ou cera quente, da dona Josefa lá no bairro São Cristóvão. Do Saci e Antônio Conselheiro, do Sururu ou Vatapá, dos encantados, Jamelão e Carcará. Na minha reza de amém-jesus-maria-e-josé, contra quebrantos e inveja, sou mangueira e portela, menino da porteira, a Deus dará… O Brasil do meu amor, terra de nosso Senhor. Não me venham, generais, com a história de indolência negra ou indígena, que, como Vinícius, sou o branco mais preto dessas cercanias… quem é homem de bem não trai o amor que lhe quer!

4 de maio de 2021 – Caio Moreira

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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LITERATURA

Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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