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LITERATURA

“Notas Mínimas”, de Katherine Funke: pequenas grandes canções

Leio o livro “Notas Mínimas”, de Katherine Funke, como um filme-colagem no qual cada cena tem a receita exata para capturar, mais do que a minha atenção, o meu desejo. Cada fragmento, ou pequeno conto, é uma nota mínima que se abre musicalmente ao leitor, convidando-o para a nota seguinte. E assim o livro vai se descortinando com esses pequenos acasos. Nietzsche escreveu que o acaso guia a nossa mão e toca conosco uma melodia. De nota mais nota vai se fazendo um livro ou uma sinfonia. Na escrita, a nota é esse rabisco, as ideias que brotam em qualquer lugar, uma pequena observação, uma anotação breve, o registro de uma cena. Na música, a nota é o elemento mínimo de um som, uma vibração, uma agitação de moléculas de ar. Em ambos os casos, as notas são esses movimentos que preenchem a vida de verso e canção. Aliás, escuto Joni Mitchell enquanto leio o livro. Tudo a ver.
Não é à toa que Roland Barthes, ao escrever sobre o fragmento, tenha observado que ele é como uma ideia musical de um ciclo: “cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de sua vizinha”. O compositor Schumann, lembra Barthes, chamava o fragmento de intermezzo, multiplicando em suas obras os intermezzi. Tudo o que ele produzia era intercalado. Nesse sentido, a sequência de fragmentos é uma espécie de “soma de espetáculos”.
Os românticos alemães sabiam da potência filosófica dos fragmentos. Novalis tratava suas anotações como sementes literárias, grãos de pólen, que “deviam ser acolhidos e estudados como textos para pensar”. O dicionário diz que o fragmento é um pedaço de uma coisa partida ou quebrada; parte de um todo; pedaço, fração; parte que resta de uma história literária ou antiga, ou de qualquer preciosidade.
No livro de Katherine, cada fragmento, cada nota mínima, mais do que uma fração, ou um simples pedaço, é um microcosmo do dia a dia que se descortina para o sublime, seja na sua dimensão lírica ou trágica. Sim, cada conto é um pedaço de uma vida partida ou quebrada, mas é também a possibilidade de sua redenção. Não à toa, já no primeiro pequeno texto, um espírito religioso inventa sua transcendência na aceitação do trágico, quando um cigarro, mesmo que industrializado e cancerígeno, salva-o do vazio da vida: “Dane-se, pensava e aquela rebeldia era na verdade seu grande alento. Dane-se! Santo cigarro! Tinha o poder de conectá-lo com essa grandeza universal de não ser melhor nem pior que ninguém”.
As notas mínimas de Katherine nos convidam a encarar o vazio da vida, o drama cotidiano da monotonia e da fixidez, mas também nos convocam a continuarmos andando no meio da chuva, mesmo com os pés em havaianas numa estrada cheia de lama. O livro revela as duas mil toneladas que o mundo já tinha às nove horas da manhã para a secretária Maria Lúcia, mas nos convida a dançar, porque a dança leva a um outro mundo no qual podemos nos descobrir anjos de novo. Todo embrulho nos oprime, mas nos mostra também que estamos vivos.
O livro apresenta uma série personagens que podemos encontrar no dia a dia de qualquer cidade grande. No metrô, somos aquelas “minhocas esquecidas nesse negreiro subterrâneo”. A vida sufocante das grandes cidades, aliás, é o pano de fundo de boa parte dos textos, compondo um mosaico da nossa triste e tensa contemporaneidade. E é justamente essa dimensão que faz a grandeza de seus personagens, sujeitos interessantes vão desfilando pelo livro. O Edson, por exemplo, que nos ensina a sentir o agora, e só. A garçonete Geisa que suporta os clientes insatisfeitos. O Marujo que ama a esposa depois de dormir com a amante. A imaginação que viaja na noite de insônia ou na fila. O carteiro que nunca recebeu cartas e decide abrir uma apenas por curiosidade. A Érica que queria ser uma flor de boldo. O desempregado Ricardo Moura que está feliz porque não lhe faltam cigarros. A Carla que é fã do Arnaldo Baptista e canta na chuva. Alguém que é feliz porque é míope. A mulher que com medo de perder a razão decide não decidir mais nada. As confissões de uma jornalista no velório de Zélia Gattai. O assassinato do pobre e negro Alexandre. O violonista anônimo. O bêbado que tenta se equilibrar no ônibus. A Marília que ama flores. A menina Roberta que vende balas no semáforo. O percussionista que era o sol de sua banda. O jardineiro que ri. E segue essa festa da vida! E muitas outras pessoas comuns vão ganhando uma dimensão profunda na obra de Katherine. São seres simples, mas não simplórios, grandes personagens. Os cenários são aqueles da avenida Dorival Caymmi, a Ladeira da Preguiça, a Quinta dos Lázaros, entre outros lugares de Salvador, onde morou a escritora durante um tempo de sua vida.
Os pequenos contos que compõe o livro são ricamente ilustrados por Enéas Guerra. Há um lindo projeto gráfico de Valéria Pergentino e Elaine Quirelli, a lembrar antigos almanaques nos quais as imagens, mais do que ilustrar, participam ativamente na construção de sentidos dos textos.
Roland Barthes escreveu certa vez que o fragmento implica um gozo imediato: “é um fantasma de discurso, uma abertura de desejo”. É o que sinto lendo os textos de Katherine Funke. Ainda com Barthes, poderia dizer que há em “Notas Mínimas” (Solisluna, 2009) “uma condensação, não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade, mas de música”. Cada texto é uma pequena grande canção ou uma breve sinfonia, Joni Mitchell ou Beethoven. É abrir o livro e ouvir.

11 de junho de 2021 – Caio Moreira

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LITERATURA

O caso do vampiro


No último dia 14, o célebre vampiro completou 99 anos. Celebrei a data degustando uma lembrança junto com um resto de vinho que encontrei na geladeira. Volto no tempo. Há alguns anos, caminhando pela Rua XV, em Curitiba, deparo-me com o velho autor das “Novelas nada Exemplares”. Qual seria a chance de isso acontecer uma em mil? Como poderia saber que se tratava mesmo dele, se nunca havia o encontrado pessoalmente? Algo me dizia, no entanto: veja, é mesmo ele. Até então, avistara-o apenas em uma meia dúzia de fotografias velhas, dessas que circulam por aí. Poderia não ser, mas era. Avesso a fotos e entrevistas, como todo bom vampiro – talvez simplesmente tímido ou sagaz em mitificar a própria figura – o escritor aparecia ali inteiro, caminhando com relativa pressa que a muitos ali poderia parecer lentidão. Para onde? Com um tempo livre, sentindo-me já dentro de um conto do próprio, resolvi segui-lo. Aparentava os 86 ou 87 anos que deveria ter. Fingindo mirar as vitrines, fui com o canto do olho acompanhando o seu trajeto. Parou. Entrou em uma ótica. Ficou ali os dez minutos em que o esperei sentado lá fora. Voltou. Tornou a caminhar. Vez e outra, olhava para trás, enquanto eu tentava me esconder entre os passantes. Pensando que poderia perdê-lo de vista a qualquer momento, peguei o celular, daqueles antigos com uma câmera ruim, e saquei duas fotos. É a única prova que guardo daquele encontro.

Mais adiante, dobrou a esquina e desapareceu. Pensei em correr para alcançá-lo, apresentar-me diante de seus olhos, estender-lhe a mão mesmo prevendo o constrangimento que fatalmente iria acontecer (ele odeia fãs, embora seja vaidoso), mas era tarde demais. Lamentei a falta de coragem, guardei o celular e voltei para o hotel.
Empolgado com o encontro que não aconteceu, fui até a livraria do Chain na manhã seguinte, lugar que segundo dizem visitava com frequência. Percorrendo as estantes, encontro um exemplar de “Nem te conto, João”, livro que o vampiro acabara de publicar. Abro o livro ao léu. Na página 58, a frase “Curitiba está diferente. Na pensão tem uma bicha-louca. Chama-se Lu. Usa calça bem justa. Tamanquinho”. Fecho o livro e me dirijo ao caixa. Em minha frente, uma jovem comprava um exemplar de Lya Luft. Pede para embalarem o presente. Atrás de mim, aguardando na fila, um senhor, parecido com aquele que eu encontrara na rua XV no dia anterior, me cutuca. “O que está levando aí, jovem?”. “Um Dalton Trevisan”. “Um Dalton? Não seria um livro dele? ”. Eu rio e respondo que os autores ou uma parte deles vem sempre junto com o livro. “Dizem que ele é fera”. “Sim, muito”. Enquanto me aproximo do caixa, percebo duas jovens atendentes olhando surpresas para mim. Riem discretamente uma para a outra. Enquanto pago, olho para trás e não vejo mais o velho. A mais jovem me pergunta com surpresa: “Você conhece ele? ”. “Não”. “É o Dalton”. Saio da livraria procurando pelo velho. Deve ter dobrado a esquina já, ou se escondeu na antessala da livraria para tomar um café e conversar com seu amigo, o velho Chain. A chance de isso acontecer novamente, eu sabia, era nula, como era nula a possibilidade de conhecer no hotel, naquele dia ou em qualquer outro, uma bicha-louca de nome Lu, com calça justa e tamanquinho.
Depois de algum tempo, conversando com o livreiro, descubro que a livraria é o QG do vampiro. Ali, ele recebe correspondências, entrega originais ou revisões a serem encaminhados às editoras. O Aramis Chain me falou também que bastava eu deixar um exemplar ali que ele pediria para o amigo autografar para mim. Nunca tive coragem. Mas agora que o homem fez 99 anos e resolvi reler o “Nem te conto, João”, abro na folha de rosto e encontro ali a assinatura dele. A página me passara despercebida naquele 2013. Deve haver algum sentido nisso tudo. Teria rubricado um ou alguns exemplares que foram para as estantes? Isso tudo parece mentira até para quem conta.

Post scriptum: A literatura sempre fala a verdade, mesmo quando mente. O escritor é sempre um falso mentiroso, lembrando aqui do icônico título de um livro de Silviano Santiago. Fernando Pessoa afirmou categoricamente ser o poeta um fingidor. Fingir tão completamente a dor que deveras sente faz de quem escreve esse ser tortuoso. Quando alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação será falsa ou verdadeira? Euclides de Mileto que o diga. Eis o jogo de cena. No fundo, como sugeriu Manoel de Barros, no que o poeta escreve só 10% é mentira, o resto é invenção. No caso do vampiro, minto, o que digo é verdade. Sou também um falso mentiroso. Acredite em mim.

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Boxeadores, índios e outros vaga-lumes (para Roberto Cossan, lutador vaga-iluminado, e para Alberto Pucheu, the boxer):“But the fighter still remains”

O que chamamos de contemporâneo – pautado com o aval do Estado, por exemplo, pela violência policial, desprezo pela constituição, falta de respeito pelas comunidades indígenas, entre tantas outras atrocidades -, tende a cercear, mais do que o pensamento, a nossa capacidade de imaginar, ou seja, de fazer política. É um tempo em que, para usar um argumento de Didi-Huberman, os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa (o fascismo não morreu), enquanto os resistentes “se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”. Tempo no qual os potentes refletores das sentinelas – a perseguir o voo (vaga) iluminado dos inimigos – tendem a ofuscar seu discreto brilho. Se a experiência não pode ser completamente destruída, cabe perguntar que comunidade ainda nos é possível imaginar? Ou antes, que pode a poesia na comunidade que ainda podemos partilhar? Nesse sentido, a experiência não pode ser dissociada do exercício de contestar (palavra que vem do latim contestari e que quer dizer “trazer para testemunhar” ou “testemunhar junto”). Contestar parece ser uma das formas possíveis ainda de vermos juntos o tempo. Nessa luta, deparamo-nos, por exemplo, com o anjo boxeador de Carlito Azevedo a testemunhar o “espetáculo” de mais de uma corda “estirada verticalmente no ar tendo em uma de suas extremidades um galho bem resistente e da outra a cabeça de um índio”. Não se trata apenas de, drummondianamente, lutar com palavras, tomando-as como adversárias, mas de com elas combater seja quem for. Que a luta com palavras possa ser apenas uma “luta antes da luta”, como sugeriu Alberto Pucheu em um poema dedicado também ao boxeador. Na música de Caetano Veloso, o lutador (boxeador) se encontra com o índio do porvir, imaginado como Muhammad Ali-Haj. As poéticas ameríndias parecem hoje lutar para afirmar a sobrevivência de suas culturas, bem como combater uma certa ideia que fazemos da própria literatura, devolvendo potência a ela entendida como pensamento selvagem (o ministério dos povos originários parece ser um bom começo, mas ainda falta muito). Por meio de uma concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na “natureza” e na “cultura” como elementos distintos, devemos buscar responder à seguinte pergunta: o que pode nos ensinar as poéticas ameríndias? O que está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar dessa poética da alteridade. Incluem-se nesse caso as produções literárias contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá Guarani. É o caso também da cosmogonia dos Tupinambá reescrita por Alberto Mussa (que virou enredo de Escola de Samba, na Sapucaí, este ano, o livro Meu Destino é Ser Onça), bem como da potência poética oriunda das mitologias indígenas que inspiram na literatura brasileira a linguagem de Wilson Bueno e Douglas Diegues. Doar nossos ouvidos à voz e à luta de um xamã parece ser uma forma não só de imaginá-lo, mas também de, politicamente, sabê-lo.

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LITERATURA

O Fantasma do Vale do Iguaçu

Subo e desço por essas ruas enlameadas sem deixar pegadas. A cidade, à noite, no vale, é esse vão escuro e quieto de quase morrer. Cruzo a linha ferroviária nas madrugadas frias de neblina sem deixar sinal ou quase. Passo de um lado para outro, de um mundo para outro, como quem escapa pelo buraco da fechadura. Por diversão, apareço para uns poucos miseráveis que perambulam pelas vielas com seus casacos de feltro a lembrar O Capote, de Gogol. Espio pelas janelas os homens que, preocupados com a ceia, nem notam minha presença. Atravesso portas sem pedir licença. Subo as escadas do prédio que é ou um dia foi uma escola. O piso não range com minhas pisadas. Do forro pulo ao telhado e deste ao chão. Desço até a esquina e dali vou levitando até a prefeitura, que um dia será antiga. Faço caretas para duas senhoras que, depois de se benzerem e gritarem, correm até a igreja em busca de salvação. Algumas horas depois, a polícia faz a ronda à procura do tal fantasma. Foi por aqui? Alguém aponta. Atrás daquele poste. Uma sentinela empunha a pistola e atira em mim. Ecoa na escuridão a risada macabra sem pingos nos is. Migro do passado para o futuro, e deste para aquele, como quem varre o soalho sujo à contrapelo. Estou sempre no presente, esse buraco negro que me traz sempre aqui. Estou preso em mim. E chego a pensar que só existo em um conto, para logo depois duvidar disso também. E se duvido é porque penso, e se penso é porque existo. Sou um ponto de exclamação no breu da encruzilhada.

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