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PSICOLOGIA

O discurso obsceno

Obsceno só ganhou sentido sexual tardiamente, etimologicamente a palavra significa “de mau agouro”, “sinistro” e também “impudico” e “desonesto”. Também tem o sentido, em Freud, de outra cena, cujo obstáculo é a censura. É neste sentido que o discurso obsceno não é o discurso pornográfico mas o discurso que desvela aquilo que deveria ficar recalcado. A censura implica em suplantar conteúdos desagradáveis ou insuportáveis. Tudo isto faz pouco sentido na teoria freudiana deste período, pois se o sujeito se defende do obsceno pela censura é contraditório que ele sinta prazer quando ela é suspensa. Atualmente uma enorme massa deu esse passo em ralação à censura, ultrapassou um limite politicamente consensual e nada indica, pelo contrário, que haja um desejo de voltar atrás. Pode-se dizer, por exemplo, que a posição recente do STF em relação à lgbtfobia funciona de modo análogo a uma censura, posto que proíbe práticas criminosas, o que significa, por detrás, que existe o desejo de praticá-las. Quando um líder assume um lugar que suspende a censura, seus seguidores sentem as amarras soltas e são autorizados a dar vazão àquilo que escondiam. A atribuição, portanto, que se faz a ele, no sentido de ‘dizer a verdade’ para o seguidor, é verdadeiro, posto que também é seu discurso. A teoria freudiana, contudo, não limitou-se ao prazer e ao desprazer, como se vê, aqui como nos sonhos de angústia, a realização de um desejo emperra no fato deste suposto desejo ser da ordem de algo que não causa prazer, e é, portanto, recalcado. Ou melhor: a hipótese desse algo ter sido recalcado pelo fato de levar ao desprazer não se confirma, pelo contrário. É preciso então que a categoria do gozo responda a isto. Há três gozos: fálico, do sentido, e do Outro. Lacan situa o gozo do sentido entre o imaginário e o simbólico. Nós podemos senti-lo, por exemplo, no corpo. É o gozo narcísico da imagem especular e se presta ao equívoco. Quando dois olhares se cruzam e perduram, neste instante ocorre a irrupção do desejo, suposto, do outro, o que causa o desejo, no primeiro. O gozo da sensação de ser olhada por exemplo. Mas sentir-se perseguido ou vigiado também é da ordem desse gozo. O sentido é, nestes termos, imaginário, pois ele se acomoda à fantasia, é flexível e variado. Há nisto uma erotização do significante em relação ao corpo e ao discurso do outro. Esta erotização do corpo pelo significante responde pelo nome de pulsão. Ora, o gozo fálico, situado entre o simbólico e o real (entre porque estão inscritos num nó borromeano) consiste propriamente no gozo no significante, gozo ao qual o significante é sua causa. É fálico justamente por isso, posto que o falo é, ele também um significante, e como tal, significante de uma falta. O falo ordena o discurso, e como tal possibilita o sentido. Este gozo é matemático, científico, poético, e também, seu aspecto real, castrador, limitador. A ordem simbólica é sustentada pela inscrição fálica, pela operação metafórica que transforma um desejo, resumidamente, em um nome. A partir daí o gozo fálico alcança seu alvo pela via simbólica, mas não – e isto preserva a intersecção com o real – seu objeto. O terceiro é o gozo do Outro. Na topologia borromeana está situado entre o real e o imaginário. Ora, se há um gozo fálico que não abarca tudo é lógico que haja um gozo não todo fálico. Este gozo não entra no simbólico, não pode ser traduzido em palavras. Não sendo todo fálico e estando além dele é um gozo feminino ou místico. Na minha opinião aí se tem o real alcance da pulsão de morte, solução adotada por Freud para o problema acima. Este impossível de formalizar, no esquema do nó borromeano, está situado fora do simbólico, preservando assim o real (impossível) e o imaginário (sentido) mas não o significante (fálico). Se juntarmos os três, o que de fato ocorre, teremos então a categoria do gozo como a que responde à contradição em relação à suspensão da censura, e ela implica, desse modo, na submissão ao gozo do Outro. O discurso obsceno ao suspender a censura não realizou um desejo recalcado porque insuportável, ele representou pelo sentido e pelo significante a existência (falsificada) do gozo do Outro, onde o sujeito se alinha e responde pela formulação da fantasia ao desejo (suposto) desse Outro

3 de junho de 2019 – Giuliano Metelski

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PSICOLOGIA

O Outro do outro

Se você estivesse fugindo da guerra com sua família, mas só crianças e mulheres pudessem deixar o país, e nesse momento retiram uma criança negra do trem, oferecendo o lugar à sua filha, você aceitaria? Mantemos o dilema, mas trocamos o trem por um emprego, e teremos uma imagem da perpetuação do racismo em sua estrutura.
A engenhosidade está justamente em desvelar que o racista é o Outro, e que diante de um dilema desse tipo, obviamente, triunfa o egoísmo. Mas do ponto de vista do soldado, este que efetua a troca das crianças, por que, afinal, ele se negaria a fazê-lo? Está em jogo aqui a hierarquia militar, está em jogo também a comida na mesa de seus filhos.
Mas seus superiores, aqueles que lhe deram a ordem, que o treinaram, que o condicionaram? Ora, eles mesmos foram treinados, antes deles, e antes deles, outros.
No mundo militar, assim como na ideologia política, existe uma estratégia que tem suas origens na escravidão, e ela consiste em simplesmente manter o controle através do privilégio concedido a alguns. Isto é possível quando se pune responsáveis, quando se personaliza. Na tropa, o desobediente, quando erra, é insubmisso ou ponderador, não paga, pagam todos os outros, e o líder do grupo deixa claro que estão pagando pelo erro dele. Assim destrói-se qualquer unidade que poderia haver naquele grupo, e ela passa ao controle da voz de comando. Cria-se um sistema modelado à semelhança de todo o sistema.
O outro é o Outro. Isto é, a abstração, a ordem, o inimigo, o fantasma. Agora esqueçamos toda a alegoria, e simplesmente chamemos o objeto que ordena o funcionamento do sistema pelo seu nome: capitalismo.
Agora neguemos tal sistema, pelo medo imaginário de seu contrário, o temido comunismo, e teremos o código binário da guerra híbrida. Felizmente esta estratégia está desgastando, mas será renovada, renovada e renovada. Ontem os EUA armaram o Talebã contra a Rússia na invasão do Afeganistão, hoje armam o Batalhão Azov, na Ucrânia, Batalhão este abertamente nazista. É bastante provável que no futuro próximo abandonem Zelensky, como fizeram com Kadafi, antigo aliado, mas o objeto da guerra, para além dos personagens e narrativas, está plenamente constituído.

18 de março de 2022 – Giuliano Metelski

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PSICOLOGIA

Lacração, revolução colorida, guerra não convencional e cancelamento

I
De 2013 para cá houve bastante tempo para o óbvio emergir. Se à época não estava claro o destino das manifestações de massa, ela foi se estabelecendo na mídia e nas redes sociais. Foi aglutinada ao redor da derrubada de um governo, na prisão do principal candidato em 2018 e na vitória de Bolsonaro. O manejo das paixões foi tão intenso e com custo tão alto que, obviamente, criou desgastes, ao passo que, por outro lado, garantiu uma parcela que seguirá – ao que tudo indica – fiel a sua ilusão.
II
A partir da realidade, se a tomarmos como algo já duplicado pelo simbólico, que dimensão devemos dar à virtual? Ela é o multiverso antes mesmo da física reconhecê-lo. Nós ainda estamos sob ataque, e assim seguirá. Não resta dúvida de que a operação Lava Jato, apoiada incondicionalmente pela mídia corporativa, foi parte fundamental de uma estratégia de guerra, a partir de agentes internos. A estratégia prossegue, no entanto.
III
O delírio de massa tem esse efeito curioso da alucinação negativa: simplesmente o sujeito não vê aquilo que se mostra. A paranoia de um inimigo imaginário, a incitação ao ódio, o narcisismo das pequenas diferenças, enfim, se faço uso de termos psicológicos aqui é justamente para aludir à guerra psicológica. A divisão da sociedade foi um sucesso, e foi fácil. Primeiro, é muito mais simples persuadir pela via da inveja e da frustração do que por cima. Isto mobiliza os descontentes, aponta-lhes um alvo, e os encoraja. Segundo, isto não para. Para sair é necessário consciência, e a consciência é quase um milagre.
IV
A mais sutil arma de destruição em massa em uso é o identitarismo. O mecanismo, entretanto, é o mesmo. Basta sequestrar uma pauta legítima: lá o combate à corrupção, aqui a liberdade sexual, e incitar à identificação. O objeto aqui é o gozo, tanto como lá. Um gozo que lhe foi retirado injustamente, um gozo que o outro possui, supostamente. Lá o gozo do perverso, do imoral, avesso à tradição, aqui o gozo do outro sexo, do outro gênero, do outro pronome. Reage-se a isto nos mesmos moldes que lá: ao invés de dizer somos todos humanos, estratégia tão repetida quando a coisa desanda, procura-se superar as diferenças numa forçada nominação, por um lado, ao passo que por outro, imediatamente, se segmenta os que aqui não cabem. Como se todos os gêneros entrassem num conjunto apenas porque se o nomeou com um neologismo.
V
Disto decorre aquilo que possivelmente eu mesmo seja objeto ao tocar no tema. O cancelamento. É a versão jovem da velha máquina de destruir reputações. O tema tornou-se sagrado, não se pode tocar nele, a não ser por um seleto grupo, que está em posição de fazê-lo, em seu lugar-de-fala. Confunde-se legitimidade com representatividade, e o jogo é tão na cara que a maioria opta pela segunda, trocando o alcance ao poder pela aparência de tê-lo. A imagem do vitorioso sobre os semelhantes vencidos. As classes reduzidas cada vez mais a figuras identitárias cada vez menores. É sofisticado. Alienação personnalité.
VI
Isto porque trata-se de uma guerra, por outros meios, é verdade, com uso de estratégias do inimigo, naturalmente. Se aprendemos algo nesse período foram tristes confirmações, mas o tempo é sentido no bolso. Passei a crer no milagre da consciência novamente.

11 de fevereiro de 2022 – Giuliano Metelski

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PSICOLOGIA

Crítica à crítica crítica do crítico

Há uma figura interessante que foi produzida nos últimos anos, é o crítico. Ignorando que pra criticar um livro é preciso primeiro tê-lo lido, e mais, para que seja dotada de respeito, uma verdadeira crítica deve sempre ultrapassar, em alguns aspectos, seu objeto, precipitar-se aos erros do autor e mesmo propor outros caminhos, a crítica preguiçosa, por outro lado, só tem como efeito ridicularizar seu agente. Ela tem sido o sinal mais positivo do preconceito e da ilusão, um fenômeno que só conhecia em nível reduzido: a produção de um discurso feito para ignorar a verdade. Esta defesa, no entanto, não é desconhecida, ela visa, em geral, evitar o desprazer, a culpa, a dor. A estratégia não é diversa daquela que o homem traído emprega quando tenta convencer-se de que deve haver outra versão da história, e não raro, a torna oficial. Mas é inegável também que o incentivo à nudez que o praticante expõe ao fazê-la não o incomode, o envergonhe ou desencoraje. Ao contrário, a identificação horizontal serve a isso, ela assegura que em meio a tanta mediocridade o fato de sentir-se um pouquinho assim, digamos, menos medíocre, seja algo superior. Houve uma espécie de desinversão dos valores, aliás, respondendo à inversão que haviam diagnosticado, só que ignoraram que quando se força o significado ao modo neurótico produzem-se sintomas, e estes sintomas são modos de satisfação, substitutivas àquelas rechaçadas, o que trocando em miúdos, equivale a dizer que o crítico preguiçoso tenta, imitando a caricatura que representa, gozar como se a fosse. Isto o torna, nada menos que o próprio objeto que se esforça por criticar, o circuito se fecha, embora ele, ainda, não tenha alcançado o saber, disso. Disse que é uma figura interessante porque pode sintetizar nela esse espírito ‘contraprogressista’ que deve, a meu ver, ser lido à literal: o progresso é inimigo. Portanto, a ciência, a intelectualidade, a universidade, a tecnologia, a vida, o sexo, mas não, reservas a isso, a propriedade, constituem-se em representantes da ameaça, e elas não ameaçam senão a mediocridade. Romper o discurso médio, a vontade que ele seja verdade, na qual investe-se tanto, é o mesmo que deixar de crer, e deixar de crer é reconhecer que não se sabe. Isto revela também que o crítico que imaginam, de onde retiram as referências para imitá-lo, de fato, deve existir, portanto, a prepotência que ronda alguns lugares, digamos, hipoteticamente a academia, não deixa de servir de elo para, por um lado, ser atacada, e por outro, incorporada por aqueles que sintomaticamente a atuam. Nesta atuação é possível conciliar seu repúdio à pretensão, ao salto alto da intelectualidade, com a compensação ao saber negado, mesmo que resulte num mostrengo, pouco importa. O que está em jogo aqui é gozo, e nesta fantasia, o gozo foi injustamente distribuído. Mais uma vez aquilo que deveria e não foi dado, ou fora retirado, se apresenta como reencontrado no inverso. Uma vez ouvi de um sujeito que não importava que ele não alcançasse tal satisfação, desde que os outros, também não. Esta economia, portanto, não pode ultrapassar, em nenhum aspecto, a média, e idealmente, trabalha para puxá-la para baixo. Por isso, ao contrário, alegremo-nos.

18 de outubro de 2019 – Giuliano Metelski

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